O Programa Academia Carioca foi implantado em 2009 pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro com objetivo de incluir a atividade física entre os serviços oferecidos pela saúde pública como estratégia de promoção da saúde integrada às equipes de Saúde da Família.
Diante da grande demanda vinda das escolas para atendimento de crianças e adolescentes, os profissionais de psicologia e educação física das Clínicas da Família Edma Valadão, Epitácio Soares e Maestro Celestino começaram uma atuação conjunta desde 2013. Essas Clínicas estão localizadas em três comunidades distintas do Rio de Janeiro, porém, todas são consideradas vulneráveis, apresentando extrema pobreza de sua população, com violência evidente e pouco ou nenhum espaço stop-headaches-now.com.
No primeiro momento, essas demandas eram atendidas em consultas compartilhadas, mas a quantidade de casos era tão grande que, mesmo assim, não foi possível perceber resolubilidade nas ações. Grande parte dos motivos desses atendimentos eram solicitações de encaminhamentos para a saúde mental advindos de diversas escolas do território, resultado de esses jovens apresentarem comportamento inadequado em ambiente escolar e em casa. Muitos tinham orientação direta para serviços de neurologia e psiquiatria a fim de se definir diagnóstico.
Esse fato chamou atenção da equipe, e por isso, um educador físico e uma psicóloga decidiram trabalhar essa demanda em pequenos grupos por meio de atividades de psicomotricidade. Entretanto, não houve a adesão esperada e surgiram dificuldades na formação dos grupos. Muitos participantes não davam continuidade e demonstravam desinteresse pelas atividades propostas. Percebeu-se que essa estratégia não estava adequada aos resultados esperados.
Foi quando houve a ideia do profissional de educação física utilizar o Tae-Kwon-Do, arte marcial loreana, modalidade em que tinha experiência de prática e ensino. A partir do interesse observado por essa atividade, os profissionais passaram a implantar o Tae-Kwon-Do como instrumento de intervenção daquele grupo e nominaram o grupo de Vem Ser. O grupo passou a crescer e a nova e ampliada rede de cuidado se estabeleceu.
Atualmente, praticam o Tae-Kwon-Do 48 alunos na Clínica da Família Edma Valadão, dentre eles 41 são meninos e 7 são meninas; 4 possuem alguma deficiência. 39 são beneficiários do Bolsa Família. Atendemos adolescentes e crianças a partir de 6 anos de idade. A maioria dos participantes se encontra entre os 10 e 14 anos.
O Tae-Kwon-Do é uma arte marcial milenar e dentro de sua filosofia existem cinco valores que todos deverão aprimorar dentro de si ao serem praticantes dessa atividade. São eles: 1) Cortesia: civilidade, educação no trato com outrem; amabilidade, polidez; 2) Integridade: estado ou característica daquilo que está inteiro, que não sofreu qualquer diminuição; plenitude, inteireza; 3) Perseverança: Qualidade de quem não desiste com facilidade; persistência; Característica ou particularidade de quem persevera, insiste; constância; 4) Autocontrole: Controle sobre si mesmo; autodomínio, comedimento, equilíbrio; 5) Espírito indomável: O que pode ser notado quando uma pessoa corajosa e seus princípios forem colocados diante de diferenças dominantes.
Cortesia
No grupo, este valor é disseminado primeiro do professor para o aluno, pois lá sempre são tratados com carinho, sempre estimulados a pronunciar-se e todos são tratados sem a distância “professor-aluno”, tão característica na educação clássica. Sentindo-se acolhidos, ouvidos e valorizados, os adolescentes são levados a agir da mesma forma com seus pares. No grupo acreditamos que o amor é a ferramenta mais potente do educador.
Ao errar, os alunos são levados a entender que aquele erro faz parte da construção do acerto no futuro, e não há juízo de valor sobre seu rendimento, fazendo com que a prática seja prazerosa. Dessa forma, são lembrados que a cortesia acontece também de maneira interna, resgatando a auto-estima, pois quem não é cortês com si próprio, jamais será plenamente cortês com o próximo.
Integridade
Talvez o valor mais difícil de ser trabalhado. Vivemos em uma sociedade em que levar vantagem em cima do próximo é algo valorizado e incentivado. Principalmente por ser tratar de uma comunidade onde a violência está presente de forma constante e os valores éticos e morais estão distorcidos, sem representação do poder público capaz proteger e garantir a paz.
Dessa forma, neste cenário contraditório e conflituoso, tentamos apresentar novos caminhos e conceitos. O esporte, por meio de seu poder de inclusão social, propicia que pessoas de diferentes classes sociais e etnias lutem de igual para igual. No ringue as regras não enxergam diferenças. O talento destes jovens já os levaram ao terceiro lugar por equipe em uma competição nacional (Troféu Brasil de Tae-Kwon-Do de 2016).
Sempre procuramos traçar um paralelo entre as regras de uma competição com as regras da sociedade, estimulando os alunos a refletirem sobre as condições em que vivem e as decisões que vão tomar, pois sempre lhes é dito que qualquer pessoa pode lhes apontar um caminho, mas somente eles caminharão por onde escolherem.
Perseverança
Esses jovens, por mais que não percebam ou que isso não lhes seja apontado como qualidade, já perseveram há anos. O ato de viver, ou melhor, sobreviver no local onde habitam desafia a sua capacidade de sonhar, rir, aprender e, sobretudo, amar. Tudo que precisamos fazer é criar momentos em que eles possam enxergar isso e canalizar este tão potente valor a partir de suas ações e atitudes. Eles precisam perceber que, dessa forma, trarão fatores positivos a suas vidas.
Ao participarem do grupo de estudos que lhes é ofertado de forma optativa para que possam melhorar suas notas e superar suas dificuldades escolares, percebem seus potenciais, pois ao mesmo tempo em que são ajudados com suas dificuldades, ajudam aos demais alunos nos momentos em que percebem possuir maior facilidade.
Não importa o tamanho da dificuldade que o aluno tenha, ele sempre encontra um momento em que se sai bem e pode ajudar os demais, seja na prática do Tae-Kwon-Do, seja no português, em matemática.
Autocontrole
Muitos de nossos alunos chegam ao grupo através de encaminhamento escolar direcionado para a saúde mental, apresentando, segundo a escola, comportamentos inadequados e por vezes agressivos.
Não é incomum que eles já tenham passado em algum momento por psiquiatras, neuropediatras e psicólogos buscados na rede privada. Alguns tomam medicamentos para controle da ansiedade, déficit de atenção, hiperatividade, sedativos para dormir e antipsicóticos.
A Clínica da Família, apostando no cuidado integral desses jovens, vê no Grupo Vem Ser do Programa Academia Carioca um caminho para a transformação e melhora do seu potencial.
No grupo, o desenvolvimento das capacidades emocionais e psicológicas é incentivado através do esporte. No Tae-Kwon-Do, o controle do corpo para executar uma técnica de chute está intensamente ligado ao controle mental necessário para ultrapassar o desafio que é conseguir desferir o golpe. Além de trabalhar de forma prazerosa a habilidade de tomada de decisão.
Dessa forma conseguimos com sucesso reduzir o número de medicamentos tomados por esses jovens, obtendo melhora verdadeira destes comportamentos inadequados.
Para tanto se fez necessário ir a fundo às causas desses problemas, ao fazermos visitas periodicamente às escolas de todos os alunos e estabelecermos comunicação próxima com as famílias destes jovens. Muitas vezes mediando conflitos para resgatar laços familiares e possibilitando diálogos onde antes só havia grito e incompreensão.
Espírito indomável
Tal como a água de um rio que encontra a pedra em seu caminho, esses jovens mostram a cada dia que possuem criatividade, coragem e capacidade necessária para encontrar o seu caminho.
Não cabe a nós andar por eles e eles bem sabem, porém podemos trazer a reflexão sobre o mundo para que de forma autônoma sejam capazes de decidir por onde caminhar. Acreditamos que estes jovens não são diminutos por terem menos idade ou estudo, suas experiências de vida são sempre valorizadas na construção deste trabalho. Trabalho este que é feito em parceria com eles e não feito para eles.
Estes jovens são implicados a se co-responsabilizarem por seus sucessos, pois seus erros são vistos como parte da construção de um possível acerto. Tudo que lhes falta é alguém que acredite, pois a descrença talvez seja o pior mal que lhes podemos fazer.
Pequenas histórias, grandes mudanças
Um adolescente de 12 anos quando chegou ao grupo, apresentava extrema agressividade, tomava Risperidona, Ritalina e fazia uso de benzodiazepínico para dormir. Carregava consigo, o “rotulo” da hiperatividade com Déficit de Atenção. Suas notas estavam todas baixas, sendo sua média mais alta 4, em educação física. Ao ingressar no grupo, descobrimos que curiosamente nunca havia repetido de ano antes. Suas experiências anteriores a este ano letivo eram de notas acima da média. Acompanhando o caso, nos foi explicado que, recentemente, a mãe o mandou morar com a avó desde que ele se desentendera com o padrasto.
Este jovem sentia-se magoado e preterido pela família. O remédio que tomava fazia com que se queixasse sempre de estar cansado durante as aulas. Por isso, pactuamos com a avó que o jovem não deveria vir para o grupo sobre efeito de nenhum de seus medicamentos e que deixasse para dar o remédio somente quando fosse para a escola.
Desta forma o rendimento dele durante o grupo tanto no momento do Tae-Kwon-Do quanto nos momentos do grupo de estudos melhoraram. Passou a ser um aluno com médias escolares acima de 8, tal como era de costume quanto morava com a mãe. Seu comportamento hoje é elogiado na escola e já não mais faz uso de nenhum medicamento.
Lições aprendidas
É necessário colocar os jovens como protagonistas do processo, estimulá-los e ouvi-los com carinho e respeito.
A arte marcial, e o esporte em geral, é apenas um meio, o mais importante é que observemos e cuidemos dos valores que iremos construir junto com os jovens.