APSREDES

Pesquisador Erno Harzheim (UFRGS) faz uma avaliação da Atenção Primária no Brasil, a partir de resultados de pesquisas que mediram os atributos da atenção utilizando o instrumento PCATool

O Programa Mais Médicos trouxe à tona discussões sobre os desafios da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil, como a questão da dificuldade de acesso aos serviços de saúde, especialmente, ao profissional médico em diversas localidades do país e sobre a qualidade da atenção prestada à população. Ao todo, a iniciativa conta com 14.462 médicos que cobrem cerca de 50 milhões de brasileiros em 3.785 municípios. Um dos desafios que vem sendo debatido no país é sobre a melhoria da qualidade da atenção e o fortalecimento da Atenção Primária no país.

Para acrescentar argumentos às discussões, o Portal da Inovação na Gestão do SUS entrevista o pesquisador Erno Harzheim, do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que está envolvido em várias pesquisas que medem a extensão e a força dos atributos da APS no Brasil. O Instrumento de Avaliação da Atenção Primária, em inglês Primary Care Assessment Tool (PCATool), desenvolvido pela professora Dra. Barbara Starfield juntamente com colaboradores na Universidade John Hopkins, é um instrumento potente que vem sendo utilizado por pesquisadores brasileiros e de outros países, que permite a leitura da realidade no atendimento realizado pela atenção primária por meio da experiência de usuários (adultos e crianças), profissionais de saúde e gestores.

“O PCATool-Brasil já foi aplicado em vários municípios (Porto Alegre, Curitiba, Chapecó, Rio de Janeiro), contendo uma vasta literatura disponível, com que podemos constatar a qualidade dos serviços prestados à população”, diz Harzheim. (Veja o resultado da pesquisa avaliativa sobre os três primeiros anos de implantação das Clínicas da Família na cidade do Rio de Janeiro publicada na Série Inovação da Gestão). Para o professor Erno Harzheim, as evidências levantadas pela aplicação do PCATool no Brasil, demonstram que investir na Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo de efetivação do SUS é o melhor caminho para propiciar uma revolução na qualidade da APS. Porém ele adverte sobre a prioridade dada em alguns municípios para o desenvolvimento dos atributos derivados em detrimento dos essenciais. “Me preocupa que os atributos essenciais estão, por vezes. sendo desprestigiados em favor do desenvolvimento dos atributos derivados, o que compromete a efetividade e a qualidade do serviço de atenção primária”, pondera Harzheim.

O pesquisador fala também sobre o RegulaSUS, um projeto desenvolvido pela UFRGS e Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande de Sul, com apoio do Ministério da Saúde, que está qualificando a regulação das consultas com especialistas na capital Porto Alegre. “Na Endocrinologia, onde discutimos e otimizamos o manejo clínico de cerca de quatro mil casos entre os teleconsultores do RegulaSUS e os médicos da APS, conseguimos uma redução de 50% da lista de espera por atenção especializada. Ou seja 2 mil consultas solicitadas para o especialista foram redirecionadas para APS. Isso fez com que a lista de espera reduzisse ao mesmo tempo que os pacientes foram melhor manejados na APS”, ressalta Harzheim. “Encaminhamentos desnecessários da APS para atenção secundária demonstram a fragilidade da atenção no país”, observa.

A seguir a entrevista concedida ao Portal da Inovação na Gestão do SUS pelo pesquisador Erno Harzheim, do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS).

Portal da Inovação – Qual a sua avaliação sobre o momento atual da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil?

Erno Harzheim – A APS no Brasil transita entre dois extremos e dentro desses dois extremos tem uma gama de tonalidades distintas. Uma é APS formatada para dar muito espaço para promoção da saúde e prevenção de doenças e atendimento a grupos ditos prioritários de pessoas definidos por algumas condições e, no outro extremo, estão os serviços de APS que são pronto atendimentos simplificados com baixa capacidade de resolução. Nenhum desses dois extremos estão corretos, a gente precisa de serviços que deem conta de entender as demandas das pessoas. O importante não é o modelo, o modelo se cria através das necessidade das pessoas (…) O nosso papel é organizar a resposta. A gente tem que ter capacidade de absorver as pessoas que precisam de consultas, inclusive por problemas agudos e com algum grau de urgência, porém sem a necessidade dos serviços de urgência e, sim, nos serviços de APS. E se eu hipertrofio o cuidado para atividades programáticas, a grupos prioritários, eu acabo fechando a porta para o atendimento das pessoa que estão com alguma condição de saúde que agudizou por algum motivo.

Portal da Inovação – Quais distorções, problemas ou gargalos identificados por meio da aplicação do PCATool em várias cidades do país, entre elas, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Chapecó, Curitiba,?

Erno Harzheim – Para começarmos, quero ressaltar a questão do contingente populacional atribuído para cada médico. É claro que o Brasil trabalhou com a lógica do que ele tinha capacidade de financiar, do número de equipes de APS que conseguiria ofertar, e com isso foram estabelecidos parâmetros populacionais. Mas, em nenhum país, com sistema de saúde bem desenvolvido e que responde organizadamente às necessidades em saúde das pessoas, se trabalha com um médico para 3 mil ou 4 mil pessoas. É um médico para 1.800 até 2.500 pessoas, dependendo da condição epidemiológica e vulnerabilidade socioeconômica delas. Quanto maior a vulnerabilidade, menor deve ser a proporção médico/habitante. Outra distorção diz respeito a delegação de tarefas entre as profissionais de saúde. Há uma confusão entre fazer uma APS que seja democrática entre os trabalhadores de saúde, onde todos são tratados com respeito na divisão de suas tarefas em comparação ao posicionamento de que todos devem fazer as coisas um pouco semelhantes. A delegação de tarefas no Brasil é majoritariamente abordada, por muitos autores e gestores, na questão de campo de atuação, e de núcleos profissionais, mas esta discussão toda se perde dentro do serviço de saúde, gerando uma pretensa ‘igualdade’ na distribuição de tarefas. Ou seja, se busca uma pretensa democratização entre os profissionais do serviço e as tarefas não são distribuídas com uma lógica de quem pode dar uma melhor resposta ao paciente. Isto gera perda de eficiência, aumento da medicalização de processos de promoção de saúde e diminuição da oferta de consultas médicas e de enfermagem.

Portal da Inovação – O senhor acha que muitos profissionais de saúde não tem claro o papel deles dentro da unidade da saúde?

Erno Harzheim – Tenho certeza que não. A ferramenta do PCATool aponta a fragilidade desse ponto nos serviços de saúde.

Portal da Inovação – Há distorções entre o grau de desenvolvimento dos atributos essenciais e derivados na APS no Brasil? Isto é percebível pelo questionário do PCATool Brasil?

Erno Harzheim – No momento em que a professora Barbara Starfield denominou um conjunto de atributos como essenciais e outros como derivados, a gente tem que se ater ao conceito destas duas palavras. O que é essencial vem em primeiro lugar: se a gente consegue fazer o essencial a gente se dedica aos derivados. E isso no Brasil está distorcido. Qual o aporte hoje que os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) podem dar para a resolução dos problemas de saúde em grande centros urbanos com uma população de classe média e baixa? É muito pequena. Então, por que eu tenho um formato único de equipe? É claro que é importante o papel dos ACS em situações de extrema vulnerabilidade socioeconômica, onde eu tenha epidemiologicamente definido um conjunto de agravos sobre os quais eles tem capacidade de incidir, que são especificamente situações agudas muito básicas e algumas condições materno-infantis. Em outras áreas, a gente tem que buscar como que eles (ACS) podem ajudar, isso não está dado. A formação dos ACS hoje em dia não é suficiente para isso. (…)

Então, estamos vivendo uma hipertrofia dos atributos derivados (…) Outro ponto: a gente perde muito tempo em tarefas administrativas, em reunião de equipe, em discussão, em atividades ditas de educação permanente que no formato oferecido não tem efetividade para mudar o comportamento dos profissionais de saúde, nem mesmo das equipes de saúde, e com isso a gente reduz o tempo de oferta da atenção às pessoas. Outra questão apontada retrata as atribuições dos profissionais nas unidades de saúde (…) Eu acho que cada profissional tem que se dedicar prioritariamente ao que ele faz melhor, e ao grau de responsabilidade que só ele tem. Consultas de algumas condições de saúde, de revisão, de checagem ou manejo ou controle de parâmetros poderiam ser facilmente divididas entre o médico e o enfermeiro. (…). Um exemplo muito bom disso é o que ocorre na Espanha. O consultório do enfermeiro é ao lado do consultório do médico, com uma porta de comunicação entre os dois. Boa parte do cuidado rotineiro de algumas condições crônicas de saúde é dado pelo enfermeiro que frente à uma demanda clínica que ultrapassa a sua capacidade de resolução, bate rapidamente nesta porta de comunicação e conversa com o médico e, em menos de um minuto aquela situação é resolvida, pela dupla enfermeiro e médico. Em compensação, apresentação súbita de agudizações de sintomas são majoritariamente vistos por médicos na Espanha e não por enfermeiros, contrariamente ao ocorre no modelo do ‘acolhimento’ aqui no Brasil. No nosso modelo de acolhimento, podemos dar margem a uma má percepção da queixa aguda. Ela pode ser vista como simples, por um profissional que naquela situação não tem capacidade plena para distinguir quando aquele sintoma representa gravidade ou quando ele não representa. Em compensação checar a taxa de hemoglobina glicada para ver se o diabete está bem controlado, ou medir a pressão arterial, é algo que está completamente no escopo da profissão do enfermeiro e poupa o tempo do médico e tira uma responsabilidade do enfermeiro de se expor, quiçá, a determinar se o sintoma agudo que o paciente apresenta demanda uma atitude de maior ou menor intervenção, que pode estar fora da formação dele.

Portal da Inovação – Quando a APS não tem adequadamente desenvolvidos os atributos essenciais ela acaba encaminhando muitos pacientes para outro nível de atenção. O senhor traz a experiência com RegulaSUS, do Telessaúde do Rio Grande do Sul, que apoia o complexo regulador ambulatorial da Secretaria Estadual de Saúde. Como é esta experiência?

Erno Harzheim – O RegulaSus, é uma parceria entre a Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representada pelo Telessaúde RS, com apoio do Ministério da Saúde, criada em 2014, pela anterior Secretária Estadual de Saúde Sandra Fagundes, e além de mantida, priorizada pela nova gestão da saúde do Estado, representada pelo atual Secretário Estadual de Saúde, João Gabardo. Conjuntamente, fizemos o diagnóstico das listas de espera por consultas especializadas dos pacientes que vem do interior do Estado para a capital, Porto Alegre. Avaliamos que um contingente grande de consultas eram determinadas por problemas passíveis de serem resolvidos com algum grau de tranquilidade na APS. Então, em um primeiro momento, analisamos a lista de espera por consulta em cada especialidade, fazendo uma análise de frequência das condições de saúde que tem o maior peso em frequência dentro desta lista e se essas condições poderiam ser resolvidas na APS. A gente estabeleceu um protocolo de encaminhamento para cada condição de saúde, que reúne um conjunto de critérios que definem para tal condição de saúde quando ela é de competência do especialista daquela área e quando ela é de competência do médico da APS. A gente aplica esses protocolos para a regulação dos casos e os casos que atendem aos critérios de consulta especializada são marcados com prioridade. Os casos que não atendem a este critério são discutidos pela equipe de teleconsultores do TelessaúdeRS com os médicos assistentes da APS. O médico assistente esclarece suas dúvidas, recebe orientações de otimização do manejo clínico e divide alguma potencial angústia daquele atendimento com o colega teleconsultor e passa a se sentir capaz de fazer aquele cuidado e, assim, cancela o encaminhamento. Mas, claro, há casos que não cabem nos protocolos, devido a especificidades da condição de saúde naquele paciente, ou por incapacidade do serviço local em realizar alguma ação, então, nessas situações, de maneira nenhuma a gente quer o detrimento da saúde do paciente e aí ele é encaminhado para a consulta com especialista. Começamos este trabalho no fim de 2013, e no ano passado realizamos uma fase piloto. Desde então, elaboramos os protocolos de Endocrinologia, Nefrologia, Pneumologia, Cardiologia, Neurologia, etc. A cada mês nós estamos fechando dois a três protocolos de outras especialidades, para até o fim de 2015 estarmos regulando todas elas, junto com a equipe do complexo regulador estadual. Na Endocrinologia, onde discutimos e otimizamos o manejo clínico de cerca de 4 mil casos entre os teleconsultores do RegulaSUS e os médicos da APS, conseguimos uma redução de 50% da lista de espera por atenção especializada. Ou seja 2 mil consultas solicitadas para o especialista foram redirecionadas para APS. Isso fez com que a lista de espera reduzisse ao mesmo tempo que os pacientes forma melhor manejados na APS. Nesse momento estamos realizando três ensaios clínicos junto com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre nas especialidades Endocrinologia, Cardiologia e Urologia fazendo com que os ambulatórios das especialidades deem alta para pacientes que estão estáveis, com algum grau de tutela dos teleconsultores do Telessaúde para com o médico da APS, para darmos a devolução desse paciente com qualidade e segurança para a APS, abrindo mais vagas na atenção especializada.

Por Vanessa Borges, Para o Portal da Inovação na Gestão do SUS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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