A OPAS Brasil organiza uma agenda sobre os avanços e os desafios do Sistema Único de Saúde (SUS), prestes a completar 30 anos em 2018, e que se prepara para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (OSD) da Organização das Nações Unidas (ONU), a Agenda ODS 2030. Com o tema 30 anos de SUS, que SUS para 2030, a OPAS Brasil envolverá gestores, profissionais de saúde, pesquisadores, especialistas para a produção de conhecimentos com base em evidências científicas para subsidiar essa reflexão sobre o SUS. A partir deste mês, a OPAS Brasil realiza uma pesquisa, baseada na aplicação de um questionário, com aproximadamente 200 atores estratégicos do SUS para definir os eixos temáticos dos debates.
Para saber mais sobre o projeto, o Portal da Inovação na Gestão do SUS entrevistou, em setembro, na sede da OPAS, em Brasília, o coordenador da Unidade Técnica de Sistemas e Serviços de Saúde da OPAS Brasil, o médico italiano Renato Tasca, formado em Turim e especialista em saúde pública na Itália e na Inglaterra. Conhecedor do SUS desde a sua concepção, Tasca defende que a sustentabilidade do SUS passa por uma reforma estrutural no sistema de saúde. Para ele, é necessário adequar o modelo de atenção à saúde ao modelo de gestão para organizar a rede de serviços e promover a continuidade do cuidado à saúde dos usuários, uma das principais queixas da população. Tasca é enfático ao afirmar que, apesar do subfinanciamento do setor, agravado pelo ajuste fiscal, o SUS é a melhor solução para avançar na melhoria das condições de saúde da população, contribuindo também para a redução das iniquidades sociais.
Tasca já atuou na OPAS Brasil em várias oportunidades. Após trabalhar em outros países da América Latina e da África em cooperação técnica na área da saúde, Tasca chega à OPAS Brasil, em 2008, para coordenar a Unidade Técnica de Sistemas e Serviços de Saúde. Em 2012, segue para o escritório central da Opas em Washington, para assessorar a área de sistemas integrados de saúde. Mas o tempo fora da OPAS Brasil é curto e retorna em 2014 para um novo desafio, organizar a recém criada Unidade Técnica do Programa Mais Médicos. Agora, Tasca volta à coordenação da Unidade de Sistemas e Serviços em Saúde para continuar a sua trajetória no SUS.
Portal – Qual a proposta da OPAS Brasil para impulsionar a discussão entre os atores do setor de saúde brasileiro e contribuir para o alcance da Agenda 2030?
Renato Tasca – Por meio da agenda 30 anos de SUS, que SUS para 2030, a OPAS Brasil analisará os avanços do SUS, apresentando tanto a contribuição da política de saúde para a sociedade brasileira, quanto para o sistema de saúde no nível global. Vários países do mundo, como Índia e China, estão de olho no que acontece aqui, porque o SUS é um grande laboratório sobre políticas públicas em saúde. O Brasil é o único país do mundo que fez uma Atenção Primária em Saúde (APS) em dimensões continentais, com cobertura de 76% da população (154 milhões de pessoas) e de estratégia Equipes Saúde da Família de 60% da população (123 milhões de pessoas). Não há outro país no mundo com uma APS com estas dimensões, isso é totalmente inédito.
Também vamos levantar possíveis caminhos para o futuro do SUS até 2030, apontar mudanças necessárias para alcançar as metas da Agenda 2030. Vamos construir esta proposta por meio de intenso diálogo com os atores do setor. Vamos ouvir gestores, pesquisadores, especialistas, profissionais de saúde sobre o que pode melhorar e produzir documentos que estimulam a discussão. A OPAS é uma instituição internacional que tem uma longa história de cooperação técnica no Brasil, seu apoio no fim dos anos 80 e começo dos 90 foi essencial para fortalecer e legitimar o SUS. Vamos reunir excelência técnica e estimular o diálogo. Essa é nossa responsabilidade. Começamos com uma pesquisa com aproximadamente 200 atores estratégicos do SUS para termos um termômetro sobre o tamanho do desafio. Vamos propor uma agenda de encontros e construir conjuntamente essa proposta. O primeiro encontro ocorreu em julho, na sede da OPAS em Brasília (Leia matéria), onde reunimos governo, academia, membros do Judiciário e Ministério Público para discutir a importância da cobertura e da expansão da Atenção Primária para o fortalecimento do SUS.
A Agenda dos ODS 2030 traz a cobertura universal em saúde como meta para todos os países. Porém, atualmente, o SUS enfrenta dificuldades financeira e política que colocam em risco a própria sustentabilidade. Quais são os principais desafios?
Renato Tasca – O tema da sustentabilidade dos sistemas de saúde está presente para todos os países, especialmente, para aqueles que apostam na cobertura universal. Entre as metas dos ODS 2030, a da cobertura universal em saúde é a mais ousada para os países porque repercutirá nos resultados de outras metas. Houve uma série de dinâmicas no setor de saúde decorrentes, por exemplo, de mudanças epidemiológicas, demográficas e até mesmo de uma maior consciência das pessoas de que a Cidadania passa pelo acesso à Saúde, que impõe aos sistemas de saúde adaptações urgentes no modelo de atenção e também na gestão do sistema para alcançar a cobertura universal, além, é claro, de um suporte financeiro suficiente.
O modelo atual de atenção e de gestão do SUS está voltado para uma realidade que não condiz com as necessidades de saúde da população brasileira e se apresenta de forma fragmentada para a população. Quando o SUS nasceu, o padrão de doenças da população era caracterizado por uma carga muito elevada de doenças infecciosas e não respondia às demandas das doenças crônicas, das violências, que foram se tornando cada vez mais prevalentes. A questão do acesso a procedimentos especializados, por exemplo, que passa pela regulação dos serviços, depende de uma gestão eficiente do sistema. Além de mudanças no modelo de atenção e de gestão, o SUS precisa enfrentar a pressão econômica, imposta pelo mercado, que oferece mais procedimentos e soluções tecnológicas, sem a devida eficácia comprovada, em muitos casos.
O que seria necessário para aperfeiçoar o sistema de saúde do Brasil?
Renato Tasca – A OPAS defende que Saúde não é mercadoria, é um direito fundamental da pessoa, independentemente do status social. Há uma série de procedimentos que estão ficando obsoletos no SUS e, infelizmente, por falta de sustentabilidade política, ninguém é capaz de fazer mudanças efetivas. Hoje, não há clima político para isso, mas o debate deve começar.
Tivemos as Leis 8.080/1990 e a Lei 8142/1990 e as Normas Operacionais Básicas (NOB 91, 93, 96, a NOAS 2001 e o Pacto pela Saúde em 2006) e a Emenda Constitucional n.29/2000. Para agravar o cenário financeiro da Saúde, foi aprovado, em 2016, o novo regime fiscal com EC n. 95/2016, que congela os recursos da Saúde por 20 anos. Recentemente, as discussões sobre a política são pontuais como a unificação dos blocos de financiamento e a revisão da Política Nacional da Atenção Básica e, mesmo assim, geram intensos debates.
O SUS é um sistema muito bom, mas tem muito que se aperfeiçoar e se tornar sustentável. E, para isso, precisa de um processo de transformação e modernização, e este debate precisa começar.
Alguns problemas são iguais há 10 anos, como a interdependência das relações interfederativas. Acredito que a questão da regionalização é um tema que precisa ser discutido de forma intensa no SUS, para não ser uma decisão só de cima para baixo. Os mecanismos de pactuação que existem no Brasil não têm se demonstrado suficientemente efetivos, precisamos achar novas fórmulas para que se resolva a questão da fragmentação do sistema. Em alguns lugares, a integração funciona mais e, em outros, menos, mas não pode depender de relações políticas entre governador e prefeitos. Deve haver uma solução para que as relações interfederativas em saúde e, consequentemente, a rede de atenção sejam mais fluídas.
Há outras áreas que também necessitam de inovação, como a da participação social. Não estou falando dos conselhos de saúde, que são válidos, mas de uma participação social que aproxime a população da gestão local da política de saúde. Por que a população não defende o SUS? Porque falta aprofundar os mecanismos de participação popular. Isso respalda interpretações equivocadas que podem afetar até na manutenção da equidade em saúde no Brasil como um princípio do SUS.
Outro tema relevante para se alcançar a cobertura universal é ampliar a cobertura da Atenção Primária em Saúde (APS) e melhorar a sua eficiência, reformular o modelo de atenção à saúde e implantar efetivamente as Redes de Atenção à Saúde. A discussão sobre Redes de Atenção à Saúde foi muito intensa na década passada, levando a medidas importantes, como a Portaria MS 4.279/2010 e o Decreto n. 7.508/2011, que regulamenta a Lei n. 8.080. Contudo, a implementação das Redes de Atenção no SUS, salvo algumas exceções, está em uma fase ainda muito incipiente e o debate perdeu força nos últimos anos.
Quais os principais avanços do SUS ?
Renato Tasca – A única novidade forte e interessante que deu oxigênio e força ao SUS nos últimos cinco anos, na minha opinião, foi o Programa Mais Médicos, que potencializou a coluna vertebral do SUS, que é a APS, que estava perdendo fôlego, especialmente nas áreas mais vulneráveis do país. Com contingente inicial de 18 mil médicos, o SUS se fortaleceu em áreas que estavam há muito tempo desassistidas. O Programa Mais Médicos também implementou mecanismos de formação de médicos para atuar na APS, com estímulos para a residência em Medicina de Família e Comunidade, visando a preencher o vazio assistencial e ter médicos brasileiros suficientes. A ciência diz que um sistema universal público sustentável, com bom custo e benefício e com a população contente, o mais equitativo possível, passa por uma APS forte, voltada para atender às necessidades de saúde da população e responsável por ordenar a Rede de Atenção à Saúde. A APS intercepta a demanda e organiza a rede de serviço, incluindo a média e a alta complexidade, ela que direciona o usuário na rede de saúde. Quero ressaltar aqui a importância do modelo de atenção à saúde que induz o modelo de gestão.
O Programa Mais Médicos é monitorado pela OPAS Brasil, desde a sua implantação, por meio de pesquisas realizadas por várias universidades do país. A OPAS publicará, em breve, um artigo, em parceria com a Universidade de Pelotas, que mostra como o PMM foi responsável pela ampliação das consultas médicas para todos os públicos, desde gestantes, crianças menores de cinco anos, adultos e para usuários com doenças crônicas, como o diabetes e a hipertensão, especialmente, em localidades de maior vulnerabilidade social e mais pobres do país. As evidências sobre o PMM estão reunidas na Plataforma de Conhecimentos do Programa Mais Médicos (maismedicos.bvsalud.org).
Quais estratégias são viáveis para sustentabilidade do sistema de saúde, a exemplo do que fizeram outros países?
Renato Tasca – Alguns países encontraram a solução instituindo regiões de saúde, como a Itália, que fez uma mudança radical em 1992, onde reviu o sistema de saúde implantado em 1978. Em 1992, a Itália aprovou uma nova Lei Orgânica de Saúde que acabou com a lei anterior e reconstruiu o sistema de gestão, sem abrir mão dos princípios básicos da reforma sanitária. Preservou tudo que era inovador, como a universalidade do acesso, o sistema único e não fragmentado, mas mudou completamente o sistema de gestão, criando as regiões de saúde, onde os Estados têm a responsabilidade da gestão da rede.
Mesmo que a Itália seja muito diferente do Brasil, acredito que no SUS, alguma mudança deste tipo seria necessária. Não estou dizendo que o modelo italiano é o melhor para o Brasil, apresento apenas um exemplo do que outros fizeram para enfrentar o problema da governança da rede de serviços de saúde.
Na Itália, a região de saúde é uma autarquia autônoma sob a coordenação do Estado. O sistema italiano de saúde tinha um problema sério de sustentabilidade financeira, devido ao desperdício de recurso decorrente de um sistema de gestão ineficiente. Introduziram conceitos de transparência, controle de gestão, monitoramento da gestão para resolver o problema.
Na Itália e na Inglaterra, não se questionou a universalidade e nem a integralidade nas discussões sobre a sustentabilidade dos sistemas. Esses países foram movidos pela lógica da Saúde como Direito e ninguém quer retroceder nestes pontos. Nesses países, se desenharam sistemas que definem quais são os níveis mínimos de assistência, mas isso é para que o usuário saiba o que o sistema pode oferecer. O usuário tem direito a ter acesso a todas as informações sobre os procedimentos realizados nos centros de saúde, assim com o horário, o nome dos profissionais, etc..
Na Europa, a relação dos serviços não visa a limitar o acesso do usuário, mas é uma forma de transparência, visa a deixar claro quais são os serviços ofertados por aquela determinada unidade de saúde. Pelo lado da oferta, o sistema informa o que cobre e com qual limitação. Nos outros países, também há restrições: na Itália, por exemplo, quase não há atendimento odontológico no setor público de saúde. Na Espanha, o sistema que começou a dar tudo para todos distingue agora o atendimento para quem é espanhol ou estrangeiro.
Nos EUA, o gasto público em saúde representa 45% do gasto total, de um recurso financeiro que é 10 vezes superior ao do SUS. Por incrível que pareça, este sistema, que é claramente amparado no setor privado, gasta uma quantidade imensa de recursos públicos. Portanto, é um erro acreditar que, no Brasil, a privatização da saúde causará uma redução do gasto público em saúde. Os sistemas como o dos Estados Unidos, baseados na saúde como mercadoria, são fortemente ineficientes. Já em sistemas de saúde com perfil fortemente públicos, como o do Reino Unido, canadense, italiano são sistemas que gastam muito menos dinheiro e obtêm melhores resultados sobre o estado de saúde da população.
Como tornar o SUS mais eficiente nos gastos dos recursos financeiros?
Renato Tasca – Dizer que o SUS é ineficiente é um mito, uma simplificação. Por exemplo, do ponto de vista da eficiência dos gastos em saúde, o SUS é eficiente, se compararmos o volume de recurso financeiro disponível para o setor público com o do setor privado no Brasil, a cobertura populacional e o escopo de serviços que cada segmento oferece. Ou seja, os investimento feitos em saúde pelo setor público (federal, estadual e municipal) correspondem a 46% do gasto total em saúde para atender toda a população brasileira, cerca de 206 milhões de pessoas. O investimento privado em saúde no Brasil, o gasto realizado por 25% da população (cerca de 50 milhões de pessoas) para o pagamento de plano/seguro de saúde, ou pagamento direto, é de 54% do gasto total em saúde. Ou seja, o SUS é muito mais eficiente do que o setor privado porque oferece uma gama superior de serviços de reabilitação da saúde, inclusive os mais caros da alta complexidade, não cobertos por planos privados, além de todas as atividades de prevenção, com as vigilâncias em saúde sendo realizadas em todo território nacional (sanitária, epidemiológica, ambiental e do trabalhador), e de promoção da saúde para a totalidade de brasileiros.
Agora, para países que possuem sistemas universais, o gasto público em saúde no Brasil ainda é muito baixo. Na Inglaterra e na Itália, o gasto público em saúde representa mais de 70% do gasto total.
E outro ponto que o Brasil precisa resolver é a ineficiência do SUS, que está concentrada em causas não sistêmicas do sistema de saúde, mas relacionadas a problemas de gestão, como abusos, fraudes, compras erradas com e sem dolo, subutilização de serviços, malmanejo dos pacientes crônicos que agudizam e demandam mais gasto em saúde. Cada problema desses deveria ser combatido por meio da fiscalização intensa no SUS. Na Itália, um estudo aponta que, a cada quatro euros gasto na saúde, um euro vai para o ralo com a ineficiência. Precisamos encarar o fato de que é preciso que o sistema seja eficiente para avançar rumo à saúde universal.
Veja um momento da entrevista:
Por Vanessa Borges, Portal da Inovação