Em 1976, um ano após minha chegada em Uberlândia, arranjei um segundo emprego, como, aliás, é comum entre os médicos de hoje e de sempre.
Faço um parêntese: quando alguém ouvir falar que os sindicatos e associações médicas pleiteiam maior ordenamento e regularização das condições de trabalho da profissão, não acreditem! Aos médicos sempre interessaram os regimes liberais de trabalho, mesmo que isso lhes custe impraticáveis jornadas de oitenta horas semanais ou, em outras palavras, mera simulação de se estar presente estando ausente. Mas vamos ao caso que me propus a contar.
Um colega, Evandro Guimarães de Sousa, que dividia consultório comigo, havia assumido a Diretoria Regional de Saúde sediada na cidade. E dispondo de uma vaga de “supervisor” indagou a mim se eu não me interessaria em preenchê-la. Concurso? Isso não se usava então. Era caso de ir a Belo Horizonte e conversar com alguém de prestígio na Secretaria de Estado. E assim fiz.
Por sorte havia me encontrado, nos dias em que ocorreu o convite, com José (Zecão) Teubner Ferreira, meu amigo da UFMG, que tinha um posto de destaque na SES. Falei com ele e – zaz – a vaga ficou afiançada para mim. Passados poucos dias assinei contrato com a Funed, órgão anexo da SES que cuidava deste tipo de coisa. Percebi que era um contrato de quarenta horas semanais, que se somariam às outras quarenta que eu tinha na Faculdade de Medicina. Façam a conta… Mas meu amigo me garantiu que não haveria problema, pois eram funções “integradas” – seja lá o que isso for.
Tempos depois descobri que, na verdade, o convite tinha sido feito também a outro médico recém chegado a Uberlândia, Jansen Cunha Lima, que teve o azar de aportar a BH alguns dias depois de mim, que então já estava contratado.
E assim, cheguei à DRS (na época CRS, de “Centro”) sem funções definidas. Evandro me determinou que eu supervisionasse o atendimento em tuberculose e hanseníase em toda a região. Aliás, naqueles tempos de domínio do Inamps, o papel da SES se limitava a uma triste e pobre tríade: tuberculose, hanseníase e imunizações. Um sistema unificado e integrado de saúde era apenas um sonho, remoto.
Tratei de cuidar de tais tarefas da melhor maneira que pude, viajando aos municípios, que eram 27 na ocasião, e fazendo entrevistas com os responsáveis pelo atendimento. A interlocução cotidiana era feita – imaginem – por cartas e pacotes de exames e radiografias. Quinze dias, no mínimo, para a informação ir e voltar. Ainda bem que a maioria dos médicos, se não todos, sabia muito bem o que devia fazer e as mensagens que me enviavam eram bastante burocráticas; e também às vezes pouco fidedignas, eu desconfiava.
Havia também as viagens, ditas de “supervisão”, que deviam ser feitas em um único dia, pois não havia recursos para diárias de pernoite, apenas para refeições. Assim, a gente saia de Uberlândia de manhã para acessar municípios que felizmente não distavam mais do que 160 km da cidade e à noite já estávamos em casa novamente. Era uma questão de sorte encontrar alguns médicos trabalhando, pois o emprego era em tempo parcial e no serviço público de saúde, como se sabe, as horas médicas possuem a estranha capacidade de contarem em dobro ou triplo. Mas se fazia o que era possível.
Já na época me deparei com um fenômeno peculiar que me acompanhou nas outras instâncias onde trabalhei e nas quais as viagens faziam parte do cenário. Refiro-me à disputa de algumas pessoas, não necessariamente de escalão mais baixo, em busca de oportunidades de viajar, pelo simples acréscimo de vencimento que lhes era possibilitado pelas famigeradas “diárias” – que eram uma merreca, diga-se de passagem. Alguns levavam matula para não ter despesas com refeições e assim poupar alguns trocados. Assim, nas desconfortáveis viaturas disponíveis, às vezes ocorria superlotação, com um motorista e um supervisor com funções definidas, e mais um ou dois sujeitos, do laboratório ou do almoxarifado, por exemplo, usufruindo dessa forma insólita de incrementar renda.
Nessas viagens, os eventos mais emocionantes eram representados pela repressão à ocupação das geladeiras de vacinas com as coisas mais diversas, de água de beber, até lingüiças, queijos, refrigerantes e ovos. É bem verdade que algumas vezes não havia mesmo vacinas para oferecer…
Quando me lembro desses périplos, hoje, me dá certo pudor, pois considero que eram, na maioria das vezes, perfeitamente dispensáveis, mesmo que ainda não houvesse internet ou outra tecnologia mais aprimorada de comunicação. Um telefone fixo, de mesa, dos antigos, resolveria muito bem a maioria dos casos que surgiam. Mas mesmo assim as viagens aconteciam.
Nossa frota de viaturas era quase comovente: um Jeep Wyllis de duas décadas de uso, herói não da Segunda Guerra, mas da extinta “Campanha da Lepra”; uma Rural Wyllis um pouco mais nova e mais confortável (mas não muito), além da jóia da coroa, uma VW Brasília recém adquirida e “tinindo” de nova. Bons mesmo eram os motoristas, com uma lembrança especial para o Sr. Alfredo Silva, sempre muito amáveis, prudentes e aptos a consertar qualquer defeito que as tais viaturas apresentassem na estrada, o que não era raro acontecer.
Entre as muitas peripécias que vivi nessas viagens, algumas acabaram sendo marcantes para mim, em termos de aprendizado e relações humanas delas derivadas. Em uma ocasião, creio que em 1976 ou 1977, fui investigar um possível surto de meningite num remoto distrito de Santa Vitória, chamado Chaveslândia (ou Xaveslândia, quem sabe Xavierlândia, como lá escreviam), que ficava na barranca do rio Paranaíba, bem defronte a São Simão, Goiás, onde eu havia trabalhado. Duzentos e cinquenta quilômetros de estrada.
Cheguei lá com algumas informações e fiz um périplo por todas as casas do vilarejo, colhendo informações junto às famílias, que foram completadas com um inquérito rápido nos hospitais de São Simão e Santa Vitória (que dispunham de informação escassa e pouco confiável, na verdade). Fiz um relatório bacana, no qual analisei os casos existentes, propus algumas medidas, acrescentei algumas fotos e esperei os elogios, que vieram fartos, tanto da Diretoria Regional como da SES em BH. Mas qual! Espero que nenhum epidemiologista contemporâneo tenha acesso àquilo, tão precário e amadorístico que foi.
Em outro inquérito dessa natureza não fui tão feliz. Era um surto de diarréia, supostamente salmonelose ou rotavirose, em Capinópolis, outra cidade de nossa área de abrangência, próxima a Ituiutaba. Repeti a sequência de procedimentos que tinha sido tão bem sucedida anteriormente. Mas dessa vez o crivo epidemiológico se fez presente: Elmira Alfradique, que agora trabalhava na DRS, reconhecida como pessoa competente e, acima de tudo, brava no último furo, me passou a maior esculhambação, pela falta de método em recolher alguns dados e materiais imprescindíveis ao esclarecimento do caso, além de pouca atenção com aspectos amostrais. Tive de dizer para ela que, então, da próxima vez, que ela se movesse do birô e fosse a campo. Mas tudo passou, como deve passar. Tempos depois ficamos amigos e tudo foi esquecido. Mas o fato é que dessa peripécia ninguém matou e ninguém morreu.
Conheci gente de todo tipo. De sacerdotes abnegados a cínicos desavergonhados, passando por muita gente que estava ali sem maior preocupação ou consciência relativa ao seu papel ou a coerência e a consistência do que ali se fazia. Na época me surgiu uma pergunta que até hoje me martela, a ser dirigida a quem trabalha em tais unidades: se seu pai, sua mãe, seus filhos, adoecerem é aqui que você os traz para se tratar? Pano rápido, para a maioria talvez ali fosse apenas um lugar onde se ganhava o pão, mas não para tratar da saúde da família. Mas, sinceramente, auguro que alguma coisa tenha mudado nesses 40 anos que já se passaram desde então.
História da época: na segunda metade da década de setenta, o Ministério da Saúde criou um programa conhecido como PIASS, voltado à “interiorização das ações de saúde e saneamento”. Era um produto legítimo e bem intencionado de um grupo de sanitaristas progressistas que tinham encontrado no abrigo no Ministério, graças, principalmente, à clarividência e coragem de dois caras notáveis, Waldir Arcoverde, Ministro e Mozart de Abreu Lima, Secretário Executivo. O PIASS seria um correspondente e precursor do que mais tarde se chamou Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Era mesmo bastante ousado e inovador.
Nós da DRS recebemos, então, através de Francisco (Chicão) de Assis Machado, um sanitarista mineiro que lá estava alocado, tradicional militante do Partidão, a missão de mobilizar os prefeitos da região para que fizessem moções junto ao Ministro e ao Governo Federal em geral para que o tal programa fosse instalado também no Triângulo Mineiro, já que, em princípio, ele se destinava apenas às regiões mais pobres do país, Nordeste, Vale da Ribeira e Vale do Jequitinhonha, por exemplo.
E lá fui eu, na mesma Capinópolis da diarréia referida acima, conversar com Sua Excelência, que, de forma inédita e exclusiva em toda a região, era filiado ao MDB. O único prefeito em tal condição! Cheguei a ficar emocionado. Conversa vai, conversa vem, besthealthcareinfo.com e lasquei a pergunta que me saltava garganta a fora: o senhor tem participado do movimento de anistia e de diretas já? Acha possível ‘a gente’ conseguir isso? Ele me olhou como quem vê um marciano e não deixou por menos: Olha moço, a gente tá nesse MDB porque aqui na cidade tem uns FDP que estão na Arena. Mas votar nós vota mesmo é com o Dr. Homero. Homero Santos, eterno deputado federal pela Arena e PDS, figura ímpar, era o representante legítimo da Arena e do Governo Militar na região…
- Flavio Goulart, o autor, é professor universitário aposentado (Universidade de Brasília) e foi Secretário Municipal de Saúde em Uberlândia-MG em duas ocasiões, além de ter sido membro (vice-presidente) da primeira diretoria do Conasems, colaborador do Portal da Inovação na Gestão do SUS e autor do Blog SaúdenoDF.
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