Situações emergenciais como a pandemia, que exigem a contratação de um grande número de profissionais, expõem gargalos na área de recursos humanos em saúde, como a insuficiência de mão de obra. Enquanto algumas regiões do país concentram a grande maioria dos profissionais de saúde, outras, não conseguem atender à demanda. A constatação é de especialistas que discutiram o assunto nesta quinta-feira (07/05), durante o debate virtual Desafios no mercado de trabalho em saúde em tempos de pandemia.
Os convidados da live, transmitida pelo Portal da Inovação, foram: Ana Maria Malik, coordenadora do grupo de Saúde da Escola de Administração do Estado de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV); Mònica Padilla, coordenadora da Unidade Técnica de Capacidades Humanas para a Saúde da OPAS/OMS no Brasil; Mario Dal Poz, professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O diretor-executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IESP), Miguel Lago, foi o moderador.
Ao dar as boas-vindas aos participantes, o coordenador da Unidade Técnica de Sistemas e Serviços de Saúde da OPAS/OMS no Brasil, Renato Tasca, destacou os grandes mitos que estão sendo destruídos pela pandemia. “É mito achar que o SUS é como um projeto perdedor, ineficiente; que o servidor público seja visto como um parasita”, destacou Tasca. Na avaliação de Tasca, a Covid-19 provocará uma reconstrução total das agendas nos temas de saúde.
Para iniciar o debate, o moderador Miguel Lago questionou como o SUS será pensado daqui para frente, durante e pós-pandemia. Introduzindo as discussões sobre os recursos humanos e o mercado de trabalho em saúde, Lago mencionou as pesquisas sobre a demografia dos profissionais de saúde. “Fala-se da deficiência crônica do sistema hospitalar, especialmente no setor público. E fala-se muito pouco da falta de recursos humanos. Como é a distribuição dos profissionais de saúde no país? Existem manifestações de desigualdades regionais?”, indagou.
Panorama da distribuição territorial dos profissionais de saúde.
O professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Mario Dal Poz, observou que o Brasil pertence a um grupo de países que têm desigualdades marcantes, tanto no campo econômico quando demográfico. “Estas desigualdades têm uma representação no campo dos serviços e dos profissionais de saúde. Há uma enorme concentração na região Sudeste, seguida do Distrito Federal”, destacou.
Uma das respostas tradicionais a esta concentração, segundo Dal Poz, tem sido a expansão das escolas médicas e de enfermagem, com forte participação do setor privado. Entretanto, esta estratégia não resolveu a desigualdade, afirmou Dal Poz. Ao contrário, agravou o problema, em certos casos. “O aumento da oferta de formação não é a resposta para a redução da desigualdade”, assegurou.
“Se a saída não está na formação, quais são os caminhos?”, questionou o moderador Miguel Lago. A resposta, disse Dal Poz, está no enfoque adotado. “Temos que olhar para a demanda, que tradicionalmente não é por onde a saúde pública olha. A relação entre demanda e oferta não se ajusta, porque tem a ver com desenvolvimento tecnológico da população, e a qualidade tem a ver com o conhecimento que a população tem do serviço de saúde. Não basta ter um serviço que não ofereça exames complementares, ou não permita o diagnóstico. As pessoas vão uma vez, não veem seu problema resolvido e não voltam mais”.
É preciso, na opinião de Dal Poz, considerar também a capacidade de financiamento da demanda. Para o professor, as políticas públicas deveriam ter a função de equilibrar a oferta e a demanda.
Oferta de recursos humanos no Brasil e América Latina
A coordenadora da Unidade Técnica de Capacidades Humanas para a Saúde da OPAS/OMS, Mònica Padilla, analisou a oferta de recursos humanos nos países da Região da Américas. Padilla explicou que a OMS estabeleceu indicadores de disponibilidade de recursos humanos em saúde em relação com a população, em acordo com os países do mundo, como uma referência para a mobilização da comunidade internacional frente a um problema de déficit crônico. “Os sistemas de saúde no mundo só podem funcionar com profissionais de saúde suficientes para garantir o direito à saúde, que depende da disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade desses profissionais”, explicou Padilla.
A coordenadora ressaltou três aspectos principais a serem abordados pelas políticas de Recursos Humanos em Saúde, preconizadas em documento da OPAS para a Região das Américas. “Governança, acesso e educação são aspectos que exigem estruturas regulatórias, de gestão e de relacionamento, que possam responder às crescentes necessidades de saúde da população”, citou a coordenadora.
Padilla ponderou que o choque entre a dinâmica do mercado de trabalho e as necessidades da população faz com que as pessoas em situação de vulnerabilidade fiquem ainda mais em desvantagem e, portanto, reproduz a desigualdade social. A coordenadora salientou, ainda, que cada um dos níveis da atenção deve estar preparado para reagir de forma ágil, como neste momento de pandemia, e que esta é uma função integrada de política pública. “O Brasil avançou muito em estrutura, o desafio se coloca devido às caracteristicas continentais e a dinâmica da saúde em geral”, observa.
Mudanças nas Modalidades de contratação
A coordenadora do grupo de Saúde da Escola de Administração do Estado de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Ana Maria Malik, alertou para a precarização das relações de trabalho na área da saúde. Segundo a professora, até a chegada da pandemia ao Brasil, a modalidade prevalente de contratação, entre os profissionais de saúde, era pelo regime da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) – modalidade típica do setor privado, que passou a ser adotada inclusive no setor público.
Recentemente, observou Malik, houve uma expansão dos contratos de prestação de serviços, tanto no setor público quanto privado. “Alguns serviços gerenciados por Organizações Sociais de Saúde contratam empresas, que contratam profissionais. Isto, na verdade, tem mais impacto sobre a sensação de estabilidade e vínculo do profissional com o serviço do que com a produtividade. Produz quem quer produzir e quem tem gestão de si”, aponta Malik.
Malik chamou atenção, ainda, para as consequências negativas do modelo de contratação por regimes de plantão. “Tenho visto, inclusive no serviço público, pelo Brasil afora, um modelo de contratação que assusta profundamente do ponto de vista assistencial, para trabalhar em regime de plantão, e não em regime horizontal. É um estímulo brutal à fragmentação”, advertiu a professora, alertando que o profissional perde a vontade de acompanhar o cotidiano da organização de saúde.
Na opinião de Mònica Padilla, os recursos humanos tornaram-se variáveis que são ajustadas conforme os interesses de mercado, de forma geral, no mundo. “O recurso humano virou um gasto que pode ser economizado. Não é visto como um bem que faz parte da infraestrutura”, pontuou Padilla.
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