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ACUPUNTURA NO TRATAMENTO DA SÍNDROME DE ARDÊNCIA BUCAL: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Identificação do autor responsável
Nome Município
Maria Lucia Viana Reiss Pistilli Rio de Janeiro
Autores do relato
Nome Município
Maria Lucia Viana Reiss Pistilli Rio de Janeiro
Geny Hanna Georges Alpaca Rio de Janeiro
Contextualização/introdução

O Relato de Experiência apresentado ocorreu no Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) da Policlínica Newton Alves Cardozo, Ilha do Governador/RJ. A paciente selecionada para o relato em questão veio encaminhada pela Clínica da Família Assis Valente/RJ para a Especialidade de Estomatologia e assistida conjuntamente pela Especialidade de Disfunção Temporomandibular – Dor Orofacial por apresentar glossodinia (CID-10: K14.6). Queixa principal: sensação de dor em ardência/queimação nas mucosas jugal e de borda lateral de língua, do lado esquerdo bucal, iniciada em outubro/2020. Dados coletados através do exame clínico e da anamnese: duração contínua e intensidade grave da dor, a qual se intensificava com o consumo de alimentos picantes e cítricos; sinais e sintomas bucais (xerostomia, lábios ressecados, disgeusia, paladar fantasma salgado e intolerância ao uso de prótese parcial removível inferior); sinais e sintomas sistêmicos (gonalgia, lombalgia, insônia, anorexia e depressão ansiosa); o estado psíquico-mental (depressivo e ansioso) e os medicamentos em uso (Enalapril, 20 mg/dia, 1 comprimido pela manhã e 1 comprimido à noite; Besilato de Anlodipino, 10 mg/dia, 1 comprimido à tarde e Fluoxetina, 20 mg/dia, 1 comprimido à noite. A paciente foi encaminhada para outros serviços da Rede Municipal de Saúde que incluíram consultas médicas pelas especialidades de gastroenterologia, reumatologia e dermatologia, para os exames hematológicos (hemograma completo) e bioquímicos (níveis séricos glicêmicos, de TSH, de ferro, de zinco, de ácido fólico, de vitaminas B12 e C) e para a biópsia de língua, por haver uma suspeita de líquen plano no local de sua queixa. Em 16 de março, na consulta de retorno ao serviço, a paciente portava os resultados dos exames, os quais apresentavam padrão de normalidade, e as liberações pelas três especialidades médicas para as quais a paciente havia sido encaminhada, por não haver sido constatada nenhuma patologia associada à sua queixa. Após analisarmos todos os exames e diagnósticos, concluímos ser seu quadro patológico uma dor neuropática agravada por seu estado emocional e compatível com SAB e, desse modo, iniciamos seu tratamento prescrevendo Carbamazepina, 200 mg, meio comprimido à noite durante 90 dias.

Justificativa

A SAB é uma dor neuropática que apresenta em sua gênese um importante componente psicogênico, o qual é determinante da persistência sintomatológica e de resultados terapêuticos insatisfatórios e equivocados, quando desconsiderado (OLIVEIRA, 2013). As alterações do humor, como estresse, ansiedade e depressão, resultam em espasmos musculares e no surgimento de pontos gatilho miofasciais (MOLINA, 2011). Dores miofasciais associadas às decorrentes da SAB ampliam e intensificam, por somação, a transmissão neuronal nociceptiva que alcança o núcleo espinal trigeminal e os tratos espino-talâmico e espino-reticular, interpretada pelos centros corticais superiores e amplificada pelo sistema límbico, no processo de resposta aversiva à dor. O ciclo depressão/ansiedade/estresse – contração muscular – dor miofascial – depressão/ansiedade/estresse, tendem a reforçar estímulos neuronais excitatórios encefálicos da SAB, favorecendo sua cronificação.
A acupuntura, terapia milenar, tem demonstrado exercer eficácia analgésica em condições álgicas crônicas. A partir da estimulação de pontos específicos localizados na pele, os quais apresentam alta condutividade e baixa resistência elétricas, a Acupuntura promove, através das vias neuronal e humoral, o relaxamento emocional e muscular e a redução de inflamações e de dores. A ativação pela Acupuntura do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal é responsável por promover, através de liberações hormonais, as seguintes ações: 1. analgésica, pelas endorfina hipotalâmica e arginina-vasopressina e ocitocina hipofisárias, que promovem aumento no limiar da dor; 2. anti-depressiva, pela serotonina hipófisária e 3. anti-inflamatória, pelo cortisol adrenal. A nível medular a modulação de dor ocorre com a secreção de neurotransmissores opióides encefalina e dinorfina por interneurônios inibitórios, que promovem uma inibição pré-sináptica de fibras nervosas nociceptivas glutamatérgicas. Ainda a nível medular, e configurando a Teoria do Portal, a Acupuntura bloqueia sinais álgicos transmitidos mais lentamente por fibras nervosas amielínicas e de pequeno calibre de acenderem até o tálamo e o córtex encefálico ao estimular os impulsos mais rápidos conduzidos por fibras nervosas mielínicas de grande calibre. A ação analgésica encefálica neuronal da Acupuntura ocorre ao estimular a substância cinzenta mesencefálica a liberar endorfina que ativa os neurônios serotoninérgicos e noradrenérgicos, da via descendente inibitória da dor, os quais vão estimular os interneurônios inibitórios a nível medular (ALVARENGA, 2014).

Objetivo(s):

Apresentar a Acupuntura como instrumento eficaz e capaz de reduzir o tempo de tratamento, a fila de espera e os gastos com a compra de medicação controlada na Rede Municipal de Saúde.
Estimular o emprego da Acupuntura como valiosa terapia na remissão das dores orofaciais neuropáticas e no restabelecimento pleno e pronto da saúde e da qualidade de vida dos pacientes portadores dessas condições álgicas.
Demonstrar a eficácia analgésica da Acupuntura para a redução do tempo de administração e da dosagem de fármacos controlados, impedindo seus possíveis efeitos adversos, frequentemente ampliados em pacientes debilitados por condições dolorosas. Sugerimos a realização de estudo prospectivo para confirmação dos resultados obtidos por este relato de experiência.
Reforçar o reconhecimento da importância da contribuição de profissionais capacitados da Rede Municipal de Saúde e de seus saberes para o diagnóstico de condições dolorosas, como os envolvidos no diagnóstico da Síndrome de Ardência Bucal, a partir de abordagens complexas na busca de sua etiologia, o que permitirá, como ocorrido neste trabalho, o tratamento pronto e o não agravamento sintomatológico pela sua cronificação.

Metodologia e atividades desenvolvidas

Após fecharmos o diagnóstico de Síndrome de Ardência Bucal (SAB), foi prescrito Carbamazepina, 200 mg, meio comprimido à noite por 90 dias, nos primeiros 60 dias isoladamente e nos últimos 30 dias associado à Acupuntura. A acupuntura, sugerida à paciente, como terapia complementar ao tratamento farmacológico da SAB, foi aceita e iniciada a partir de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, 60 dias após o início do uso de Carbamazepina. Foram realizadas quatro consulta de 50 minutos com intervalo de 7 dias entre elas. Nos 30 minutos iniciais de cada consulta eram realizados os questionários, a anamnese (Anexo 1), o exame de pulso e de língua e, nos 20 minutos finais, a Acupuntura. Da primeira à quarta consultas foram empregados verbalmente os questionários para a avaliação e acompanhamento de alterações de humor apresentadas (ansiedade e depressão): Inventário de Ansiedade de Beck (Anexo 2), (BECK & STEER, 1993) e Inventário de Depressão de Beck (Anexo 3), (BECK & STEER, 1993), e para a avaliação e acompanhamento de intensidade dolorosa: Escala Visual Analógica (EVA) (Anexo 4), (GIFT, 1989). Os Inventários de Ansiedade/Depressão de Beck podem apresentar uma pontuação entre 0 e 63, através da qual pode ser apontada ausência de ansiedade/depressão (valores entre 0 e 9), ansiedade/depressão leve a moderada (valores entre 10 a18), ansiedade/depressão moderada a severa (valores entre 19 a 29) e ansiedade/depressão severa (valores entre 30 a 63). A EVA (Anexo 3) permite registrar a intensidade da dor numa escala que varia de 0 a 10, correspondendo a dor fraca (de 0 a 3), moderada (de 4 a 6), intensa (de 7 a 9) e insuportável (10). A partir da anamnese e do exame clínico do pulso e da língua da paciente, foram diagnosticados, segundo a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), os seguintes Padrões de Desarmonia Internos: Deficiência de Yin do Rim agravada pela Deficiência de Yin do Pulmão gerando Deficiência de Yin do Coração. A presença dos sintomas: zumbido, sudorese noturna, boca seca, calor no peito, nas mãos e nos pés, muita sede, lombalgia, dor nos joelhos, constipação, urina escura, língua vermelha, sem saburra e com rachaduras e pulso superficial, fino e rápido na posição do Rim, caracterizaram a Deficiência de Yin do Rim; tosse seca, sensação de calor à tarde e ao anoitecer, sudorese noturna, insônia, boca e garganta secas, voz rouca, prurido na garganta, língua vermelha, sem saburra, rachada na área do pulmão e seca e pulso superficial, fino e rápido na posição do Pulmão, caracterizaram Deficiência de Yin do Pulmão e insônia, sono com sonhos angustiantes, propensão a assustar-se, memória debilitada, agitação mental, monoideísmo, sensação de calor associada à preocupação, sudorese noturna, boca e garganta secas, ponta da língua mais vermelha e edemaciada que o resto da língua e seca e pulso superficial, rápido e fino na posição do Coração, caracterizaram Deficiência de Yin do Coração. No tratamento foram empregados como protocolo os seguintes pontos de acupuntura: R3 (em tonificação para nutrir o Rim); R7 (em tonificação para nutrir o Rim e interromper a sudorese noturna); BP6 (em tonificação para acalmar a Mente, tonificar o Yin do Rim, do Fígado e do Baço, tratar insônia, anorexia, inquietação e sensação de peso corporal); C7 (em tonificação para nutrir o sangue e o Yin do Coração); CS6 (em tonificação para acalmar a Mente e tratar a ansiedade); TA5 (em tonificação para tratar cefaleia temporal, zumbido, hipertensão, tensão muscular); E36 (em tonificação para tratar hipertensão, tensão muscular e distúrbios gastrointestinais, como refluxo gastroesofágico, anorexia e constipação); VC12 (em tonificação para nutrir a água corporal); F3 (em sedação para extinguir a Umidade-Calor, tranquilizar a Mente e circular o Xue, sangue, por todo o corpo) e IG4 (em tonificação para aliviar a dor).

Quais os resultados alcançados

O fármaco prescrito Carbamazepina 200 mg, meio comprimido à noite por 3 meses, a partir de 16 de março de 2021, reduziu sua dor em queimação com registro 9 na EVA, inicialmente, para 7, quando o tratamento por Acupuntura teve início. O Inventário de Ansiedade de Beck, com 21 questões e com valores que variavam de 0 a 3 para cada questão, apresentou na primeira consulta pontuação 43, valor associado à ansiedade grave, passando na segunda, na terceira e na quarta consultas para 37, 30 e 24, respectivamente, sendo os dois primeiros valores associados à ansiedade grave e o último à ansiedade moderada. Na consulta inicial, as questões 1, 4, 5, 6, 7, 10, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19 e 21 do Inventário de Ansiedade de Beck receberam pontuação máxima e pudemos evidenciar um grave medo de morrer e de que aconteça o pior. Na quarta e última consultas, essas mesmas questões passaram para valores moderados. O Inventário de Depressão de Beck, com 21 questões e com valores que variavam de 0 a 3 para cada questão, apresentou na primeira consulta pontuação 16, valor associado à depressão leve, passando na segunda, na terceira e na quarta consultas para 14, 11 e 5, respectivamente, sendo os dois primeiros valores associados à depressão leve e o último à ausência de depressão. As respostas ao Inventário de Depressão de Beck relacionadas à tristeza, à desmotivação com a vida, à perda de autoestima, à frequência de choro, à irritabilidade, à insônia, à disposição física e à perda de peso recente, questões 1, 4, 7, 10, 11, 15, 17 e 20, respectivamente, que obtiveram o valor mínimo na consulta inicial, assim se mantiveram ou tiveram valor 0 na última consulta. As questões do Inventário de Depressão de Beck relacionadas à dor em queimação relativa à SAB, ao apetite e a motivação sexual, as quais obtiveram valor máximo, obtiveram valoração nula ou leve na última consulta. A Escala Visual Analógica (EVA) que apresentou registro 7 antes das consultas de Acupuntura, passou, na segunda, na terceira e na quarta consultas, para 4, 3 e 0, respectivamente. A paciente relatou-nos hoje (06/08/22) que não apresenta mais dor em queimação na mucosa jugal e na língua.

Considerações finais

A Acupuntura apresenta-se como terapia capaz de solucionar de forma eficaz condições consideradas, pelas especialidades médicas, de difícil tratamento e resolutividade, tendo desempenhado, neste relato de experiência, um papel terapêutico crucial na agilização da resolução da SAB, encurtando uso medicamentoso e tempo de tratamento. Outro aspecto que consideramos uma inovação neste trabalho diz respeito à utilização de questionários, os quais empregamos para atendimento clínico, considerados de uso exclusivo para fins acadêmicos e de pesquisa e que se revelaram ferramentas indispensáveis para o acompanhamento da evolução do quadro de melhora da paciente.
O resultado alcançado motivou-nos à prática regular de atendimento pela Acupuntura para os usuários da Rede Municipal de Saúde encaminhados para a Especialidade de Disfunção Temporomandibular – Dor Orofacial e que apresentam dor persistente e de difícil resolutividade. O atendimento pela Especialidade de Acupuntura se iniciará em Setembro de 2022 e estará associada à Especialidade de Disfunção Temporomandibular – Dor Orofacial no nosso CEO. Existe um forte desejo de que as práticas desenvolvidas aqui, CEO do PNAC, possam impactar outras unidades de nossa Rede Municipal de Saúde.
Finalmente, analisamos como principais dificuldades a este trabalho, e à viabilização de uma prática clínica em Acupuntura no CEO do PNAC, as resistências inicialmente geradas por parte de instâncias administrativas superiores da Rede Municipal de Saúde, ao criarem obstáculos a seu apoio, os quais já foram superados e ultrapassados após os resultados de tratamentos exitosos, como o do trabalho em questão, reconhecidos pelas chefia da Odontologia e direção de nossa unidade. Como lição aprendida, descobrimos que, ao longo deste trabalho, a persistência em superar obstáculos, quando visionamos um bem maior, especialmente em prol do bem estar e da saúde de nossos pacientes, deve sempre nortear os nossos passos. Portanto, recomendamos que o incremento a práticas inovadoras, eficazes e humanizadas, deva ser sempre perseguido por cada um de nós, profissionais da área da saúde.

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