A Atenção Primária à Saúde (APS) é o coração dos sistemas de saúde, são inúmeros os resultados que demonstram impactos positivos na redução das iniquidades em saúde, aumento do acesso aos serviços de saúde e cuidados de saúde para grupos de risco, pessoas que vivem em regiões rurais e povos remotos, maior eficiência no fluxo dos usuários dentro do sistema, melhores indicadores de saúde, melhoria da qualidade de vida, aumento das taxas de sobrevivência, redução de complicações e melhora do bem-estar físico, funcional e psicológico dos indivíduos com condições agudas ou crônicas, imunização, redução de mortalidade materna e infantil, qualidade na gestão de doenças e melhores resultados de saúde para pessoas com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, custos reduzidos no atendimento aos indivíduos, redução de hospitalizações por condições sensíveis à APS e atendimentos de emergência, diminuição do uso de testes diagnósticos desnecessários, através melhor manejo de casos de indivíduos de alto risco e condições complexas, além do aumento da satisfação do usuário (GIOVANELLA et al., 2019; JANKE et al., 2020; OLIVEIRA; PEREIRA, 2013; PORTELA, 2017; STARFIELD et al., 2008; VITORIA et al., 2013).
Giovanella et al (2019) reforçam ainda que desenvolver uma APS integral é inseparável do desenvolvimento econômico e social de um país, sistemas públicos universais de qualidade são estruturados pela APS, modelo que torna possível garantir a saúde como direito humano, condição para consolidação da diretriz da Agenda 2030 de “não deixar ninguém para trás”.
A APS é fundamentada por atributos essenciais (primeiro contato, abrangência ou integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado) e derivados (centralidade ou focalização na família, orientação para comunidade e competência cultural).
A coordenação do cuidado, enquanto atributo essencial da APS, implica na organização de ações e condutas que envolvam duas ou mais pessoas, incluindo usuário do serviço, e a utilização dos recursos a fim de produzir cuidado em saúde de modo eficaz e que faça sentido para as pessoas e famílias em seus contextos.
No Brasil, adotamos duas funções distintas de coordenação, uma implica a integração das ações de saúde em um mesmo nível de atenção, que denominamos de “coordenação horizontal” e outra que caracteriza a necessidade de integração dos diferentes níveis do sistema, em uma perspectiva organizacional da rede, que denominamos de “coordenação vertical”. De certo, coordenar cuidado é interligar recursos comunitários, assistenciais, farmacêuticos, intersetoriais, entre outros (ALMEIDA et al., 2018; CONASS, 2011; GIOVANELLA; MENDONÇA, 2009).
Se é da APS a função de coordenar o cuidado e ordenar a RAS, o centro disparador destas ações são as equipes de estratégia de saúde da família (eSF), composta por enfermeiras (os), médicas (os), técnicas (os) de enfermagem, agentes comunitários de saúde. Adicionado à potência da presença de equipes de saúde bucal e de outros profissionais de saúde para composição do núcleo ampliado de saúde da família, que ajudam a fazer a retaguarda assistencial na APS, consolidando a premissa do cuidado integral e abordagem interdisciplinar.
Neste contexto, os desafios presentes na realização do trabalho pelas equipes de Saúde da Família imprimem em complexidades a serem enfrentadas através de diversos saberes e capacidade de articulação, reflexão crítica, reconhecimento do contexto, comunicação, acolhimento, escuta e compreensão dos diferentes valores culturais dos usuários, viabilizando soluções nos diferentes problemas de saúde, inerentes ao contexto social para a coordenação do cuidado da população (SILVA JÚNIOR; ALVES, 2007).
No Brasil, a Lei do Exercício profissional da enfermagem 74.98/1986 (BRASIL, 1986), regulamenta o escopo de atuação da enfermagem e à enfermeira cabe, privativamente ações como a consulta de enfermagem, a prescrição de medicamentos, solicitação de exames, cuidados a pessoas com condições complexas de saúde, entre outras ações.
Com a constituição do SUS e a adoção da APS como modelo para organizar a rede e coordenar o cuidado, a atuação das(os) enfermeiras (os) na APS no Brasil vem se constituindo como um instrumento de mudanças nas práticas de atenção à saúde, rompendo com o modelo biomédico e médico-centrado, possibilitando boas respostas a um modelo de atenção centrado na pessoa, na família e na comunidade (FERREIRA; PÉRICO; DIAS, 2018).
Em 2019, o Conselho Federal de Enfermagem emitiu parecer que aponta que a (o) Enfermeira (o), no contexto da Consulta de Enfermagem, no serviço público ou privado, pode encaminhar o paciente para outros profissionais médicos e não médicos, no próprio serviço ou para outros níveis de complexidade de atenção à saúde, desde que observe os protocolos municipais e institucionais de saúde (PARECER DE C MARA TÉCNICA N° 10/2019/CTLN/COFEN). Este parecer legítima a capacidade técnica e a relevância das(os) enfermeiras (os) na coordenação do cuidado, proporcionando diminuição das barreiras de acesso e consolidação da função de porta de entrada da APS, com capacidade de resolução da maior parte dos problemas de saúde, em tempo oportuno, e que garanta a continuidade assistencial.
No Município do Rio de Janeiro (MRJ), o itinerário terapêutico dos usuários pela Rede de Atenção à Saúde (RAS) é organizado através de Sistemas Informatizados de Regulação (SISREG) e Sistema Estadual de Regulação (SER), o processo de regulação das vagas é descentralizado para APS e cada uma das mais de 200 unidades de saúde, distribuídas em Clínicas da Família e Centro Municipais de Saúde tem médicos reguladores. O MRJ possui atualmente, aproximadamente 1000 equipes de estratégia de saúde da família, cada uma com uma enfermeira (o), como disposto na Política Nacional de Atenção Básica.
O SISREG é um sistema online disponibilizado pelo Datasus para gerenciamento e operação das centrais de regulação. O sistema é composto por três módulos: Ambulatorial (marcação de consultas e exames especializados), Internação Hospitalar e Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade/Custo (APAC). Cabe a (ao) enfermeira (o) operacionalizar o módulo ambulatorial, no que compete ao acompanhamento de condições ou situações clínicas dentro do seu escopo de atuação profissional. Para tanto, o acesso a consultas e exames especializados deve ser pautado em documentos de referência e contra-referência, constando história e indicação clínica, detalhamento de exame físico, resultado de exames complementares já realizados e seus laudos, primando pela boa prática clínica, baseada em evidências científicas, nos protocolos clínicos e linhas de cuidado da SMS vigentes.
Dentro desta perspectiva, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, através da Responsável Técnica da Enfermagem na APS, desenvolveu uma proposta de organizar um documento, a partir das competências técnicas e legais das (os) Enfermeiras (os) na APS, que reúne as situações clínicas ou condições de saúde passíveis de encaminhamento para outros pontos da RAS, cuja a (o) Enfermeira (o) tem autonomia para realizar a solicitação de vaga, com perfil próprio de solicitante, via SISREG, potencializando a função de coordenação do cuidado, garantindo a produção de cuidado em saúde integral e contínua.