O Brasil enfrenta a pior crise dos últimos 100 anos, iniciada como uma crise sanitária, mas que se desdobrou em uma crise política e social. Embora a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2) seja um desafio em escala global, é notório, como cotidianamente anunciada pela imprensa, por cientistas, pesquisadores, afetou o Brasil em pior escala que a maioria dos países do mundo. E não foi por acaso: foi fruto do descaso de governos, notadamente o federal, mas também de muitos estaduais e municipais.Ainda que o negacionismo da ciência, da pandemia e da gravidade da doença e a naturalização dos óbitos por parte do governo federal tenha sido, como já sobejamente demonstrado pela imprensa e pesquisadores, o maior responsável pela crise que enfrentamos, há um pano de fundo que não pode ser desprezado: uma política neoliberal que ampliou a desigualdade no país, aumentou a insegurança alimentar e, com a manutenção da PEC 95, atacou (e ataca cotidianamente) as politicas públicas implantadas no país a duras penas a partir da constituição de 1988. Em relação à Saúde, os ataques ao SUS são constantes. Embora se reconheça, inclusive em pesquisas realizadas em outros países, que a política de saúde nacional é uma das políticas de maior alcance redistributivo, governos neoliberais, particularmente depois do golpe de 2016, insistem em tentar reduzir a sua importância. São inúmeras as propostas de mudanças constitucionais, decretos e portarias que tentam acabar com a universalidade, reduzir ainda mais seu financiamento, reduzindo-o a uma cobertura focalizada nos pobres. São pelo menos três movimentos nessa direção: estímulos à ampliação de planos e seguros de saúde, terceirização da execução e da gestão dos serviços públicos (ampliando o hibridismo do sistema nacional de saúde) e ataques diretos, através de leis e decretos, ao financiamento do SUS. Esses movimentos se repetem nas maiorias dos estados e municípios brasileiros.Em Campinas não é diferente. Nós, a maioria dos trabalhadores e usuários que compõe a atual direção do Conselho Municipal de Saúde, avaliamos que estamos diante, pelo menos nos últimos 10 anos, de gestões municipais de características neoliberais. Pode-se citar como exemplos: 1. a política para ampliação de vagas em creches e ensino fundamentas, com ênfase no atendimento cogerido (“o poder público oferece a estrutura física e todos os insumos – uniforme, material escolar e merenda e cabe ao colaborador, terceirizado, gerenciar os recursos humanos”); e atendimento conveniado (transferência de recursos para crianças matriculadas no sistema privado ) . 2) O processo de expansão urbana, cuja revisão do Plano Diretor em 2017, indica um “processo de espoliação da terra, garantido por normas que ofertaram para o mercado imobiliário áreas rurais e unidades de conservação ambiental, que altera o perímetro urbano em consonância com os investimentos do capital imobiliário ; 3) há pelo menos uma década a Secretaria de Saúde investe aproximadamente 50% dos seus recursos financeiros em terceirizações, seja de atividades meio (zeladoria, segurança, farmácia hospitalar, com gastos de aproximadamente 17,40 % do orçamento), seja de atividades assistências (ambulatórios médicos, empresas com atuação em hospital público, exames laboratoriais, entre outros, com gastos de 33,10 % do orçamento municipal). 4. Apesar das várias terceirizações pela prefeitura de Campinas justificadas pela lei de responsabilidade fiscal, o gasto com folha de pessoal em Campinas tem permanecido, há anos, abaixo de 50% do arrecado, segundo as prestações de contas de Campinas encontradas no Portal da Transparência.Por conseguinte, a condução da saúde tem sido marcada por, pelo menos um dos três movimentos apontados acima: terceirizações da execução dos serviços públicos de saúde e da gestão. Do ponto de vista do financiamento, ainda que não tenha havido reduções tendencialmente, a aplicação dos recursos não se mostra efetiva, o que é demonstrável pelo baixo alcance dos indicadores epidemiológicos e de cobertura do SUS local. Não por acaso a principal queixa dos seus usuários é a dificuldade de acesso. Podemos citar, a título de evidenciar e demonstrar essa afirmação os seguintes indicadores em 2020: cobertura de atenção primária 60,5%, abaixo das metas apontadas pelas conferências municipais últimas, de pelos menos 75%; Cobertura populacional estimada pelas equipes de saúde bucal de 27,60%, abaixo inclusive das metas propostas pela SMS (43,20%). Outros, como cobertura vacinal, cobertura de citologia oncótica, cobertura das condicionalidades do bolsa família, também se encontram distantes das metas estipuladas pela própria Secretaria de Saúde. Cumpre assinalar que essas metas não são atingidas há mais de uma década. Uma das características do neoliberalismo, com suas propostas de aliviar as funções do Estado, reduzir os serviços públicos, desregulamentar as práticas econômicas do mercado, políticas de austeridade fiscal, privatizações, corte de despesas nas áreas sociais, entre outras, é a sua estreita relação com o autoritarismo. São vários autores que mostram essa relação , .. Segundo Laval as vitórias da extrema direita “não põem em questão o neoliberalismo, mas o radicalizam em uma nova forma que mistura um Estado antidemocrático forte com a maior liberdade deixada ao capital, especialmente ao capital financeiro.”Na gestão pública essas políticas, “políticas públicas ostensivamente terceirizadas e contratualizadas com o setor privado, sistematicamente tem retirado a essência pública do Estado, cada vez mais moldado á logica do “governo empresarial”. Todos esses processos corroem estruturalmente o Estado de Direito Democrático…” .O autoritarismo da gestão pública em Campinas tem se manifestado de várias maneiras, mas no escopo desse trabalho, nos deteremos nas suas repercussões em relação à política de saúde local e, em especial, na relação da gestão com o Conselho Municipal de Saúde no contexto da pandemia de coronavírus. Avaliamos que, como acontece há pelos 10 anos, o Conselho Municipal tem sido alijado da formulação das estratégias da política de saúde no município. Como evidências dessa afirmação escolhemos citar alguns fatos, os mais marcantes:1.Embora haja, em lei, uma parcela do orçamento municipal para o Conselho Municipal, é insuficiente e não há autonomia deste para utilizá-lo (não se consegue contratar assessorias técnicas; cada deslocamento de conselheiros a congressos ou reuniões fora da cidade é precedido por exaustivas negociações nem sempre bem sucedidas; a realização das pré-conferências, das conferências e outras atividades do Conselho se dão com enormes dificuldades financeiras, sempre negociadas exaustivamente, etc.); demorou-se aproximadamente 2 anos para que se conseguisse imprimir os cadernos com os relatórios e resoluções da 11ª. Conferência Municipal de Saúde. 2.Há apenas uma funcionária a serviço do Conselho Municipal de Saúde, a sua Secretaria Executiva, embora já tenhamos dimensionado, pela quantidade de tarefas a serem executadas, a necessidade de pelo menos 3 profissionais ali prestando serviços. Há anos se negocia outros profissionais, sem resultado. Só agora, no mês de abril, se conseguiu um outro trabalhador, em período parcial, estando ainda longe, portanto, das necessidades. 3.Há um desrespeito fragrante ao papel do Conselho: as deliberações do Conselho, aprovadas em reuniões plenárias, passam pelo crivo do Secretário antes de serem publicadas e aplicadas; nem todas as resoluções são publicadas, e as que são nem sempre acontecem no prazo regimental; 4. Nem todas as políticas públicas implantadas passam pelo crivo do conselho:a) foi implantada, sem anuência do Conselho e contra a resolução da 11ª. Conferência Municipal de Saúde, a Rede Mário Gatti de Urgência e Emergência, uma autarquia ligada diretamente ao gabinete do prefeito. Ela agrega os dois hospitais públicos municipais e todos os serviços de pronto-socorro e de urgência e emergência. Seja porque agrega serviços de importância estratégica na configuração do SUS local ou pelo custo de tais serviços, a Rede Mário Gatti toma relevo importante. Ao se ligar diretamente ao gabinete do prefeito e sua presidência ter o mesmo status de um secretário municipal, se constituiu, na nossa avaliação, um duplo comando da Saúde no município. Como consequência se dificulta a constituição de redes integradas de saúde, impedindo que a atenção primária assuma seu papel de ordenadora da rede de saúde. b)Ao Conselho é atribuída a votação de convênios da Secretaria que, na maior parte das vezes, chegam ao Conselho Fiscal, à Secretaria Executiva e ao Pleno, depois de implantados, cabendo a este validar o fato consumado, sob pena de se suspender serviços essenciais ao SUS local. Quase sempre há inúmeras recomendações feitas para a execução de cada um desses convênios, que, por chegarem após a vigência, caem no vazio. c)Desprezo da gestão pelas pautas que discutem os problemas que mais afetam os usuários – as pautas que interessam são aquelas exigidas por lei: aprovação de convênios, avaliação das contas e dos relatórios de gestão. Todas as outras pautas, as que tratam do acesso, da qualidade do cuidado, da restrição na prestação de serviços são trazidas exclusivamente por trabalhadores e usuários.5. O Secretário não participa das reuniões do Conselho há anos.6.Embora sejam solicitados, também há anos, consultores independentes para avaliação das contas ou de questões jurídicas sempre presentes, decorrentes das atribuições do Conselho, não temos autonomia para contratá-los e nunca nos foi disponibilizado. Por óbvio, por não termos especialistas entre os conselheiros e pela complexidade dos documentos e das normas legais que regem a administração pública, particularmente numa cidade da dimensão e importância da nossa, não é possível uma análise consistente das contas. Não por acaso, apesar da avaliação das contas da antiga Organização Social que fazia a gestão de um hospital público, o Ouro Verde, não fomos capazes de verificar as irregularidades das contas, como depois demonstradas por investigações judiciais.7.O Plano Municipal para a Contenção da Pandemia de Coronavírus e as suas várias atualizações foram realizadas sem nenhuma participação do controle social da saúde na cidade. Dada a importância da pandemia que enfrentamos, cujo início coincidiu temporalmente com a posse da atual diretoria, decidimos pensar estratégias que permitisse o Conselho, ainda que indiretamente, exercer um papel na formulação, avaliação e monitoramento da política pública de contenção do Coronavírus.