APSREDES

Cultivando Horizontes

Autores do relato:

Maria Paula de Albuquerque saude_vm@cren.org.br


Bernardo Cury bernardo.cury@cren.org.br


Adolfo Mendonça adolfo.mendonca@cren.org.br


Contextualização

Em 2018, 14,5% das crianças de 0 a 9 anos apresentavam excesso de peso, e 5,3% baixo peso (ENANI, 2019), enquanto a baixa estatura afetava 14 % das crianças entre 0 e 5 anos (SISVAN, 2019) A principal razão para o aumento da prevalência de obesidade e excesso de peso é a incapacidade dos sistemas alimentares de fornecer dietas saudáveis. O consumo de alimentos industrializados e processados que são ricos em gorduras trans, açúcar, sal e aditivos químicos está crescendo na maioria dos países. Alimentos frescos e nutritivos podem ser caros e as pessoas podem optar por alimentos mais baratos e de alto teor calórico, com baixo teor de nutrientes. Por outro lado, a desigualdade social presente no país contribuiu para o aumento da insegurança alimentar (IA), identificada na Pesquisa de Orçamento Familiar (IBGE, 2020), que foram mais expressivas nos estratos mais vulneráveis entre as famílias sem emprego estável e residentes na periferia dos centros urbanos (Graziano, 2018). Para enfrentar a Sindemia Global da desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, a comunidade internacional precisa implementar sistemas alimentares que forneçam alimentos saudáveis e nutritivos, mais baratos e acessíveis a todos. Essa resposta inclui a promoção de práticas agrícolas inteligentes para os agricultores familiares bem como pôr em debate o comportamento do mercado e do consumidor. O CREN – Centro de Recuperação e Educação Nutricional – promove cuidado alimentar e nutricional para crianças e adolescentes com má nutrição e suas famílias em distritos em situação de vulnerabilidade da cidade de São Paulo promovendo mudança de hábitos alimentares por meio de trabalho educativo e de aposta no desenvolvimento global da pessoa.

Justificativa

Durante a pandemia de COVID19 em 2020, a equipe do CREN, que conta com nutricionistas, pediatras e psicólogos, observou agravamento nas condições de trabalho, renda e insegurança alimentar das famílias assistidas. Com o projeto Cultivando Horizontes, o CREN propõe o fortalecimento e sustentação de uma rede territorial de articulação de atores e coalizões informais para promoção da alimentação adequada e saudável, uma das diretrizes da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. O projeto beneficia a população atendida pelo CREN, mas extrapola para todos os atores da rede, gerando subsídios para políticas públicas que envolvem a comida e o comer. Este projeto, em um momento de pandemia, fortalece a cadeia curta de produção/comercialização de alimentos, dimensão importante na garantia da SAN, especialmente em territórios periféricos onde há maior valorização das ausências que das potências que emergem da própria comunidade.

Objetivo

Sustentar o vínculo com as famílias acompanhadas pelo CREN, durante a pandemia de COVID19, por meio de ações de educação alimentar e nutricional que visem a promoção do acesso à alimentos orgânicos provenientes da agricultura familiar urbana; divulgar espaços de produção desses alimentos em seus territórios; fomentar a cadeia curta de produção de alimentos em territórios periféricos e auxiliar na continuidade dos espaços de agricultura urbana por meio da compra dos produtos oriundos desses lugares.

Metodologia

População beneficiada: núcleo familiar de crianças e adolescentes (0 a 19 anos) com desvio nutricional assistidas pelo CREN e em situação de Insegurança Alimentar. Com uma composição média de 4 pessoas por família e com capacidade máxima de 500 atendimento domiciliares/mês. Da característica do agricultor: agricultor familiar urbano que pertença a um dos distritos onde a equipe de Ações Comunitárias do CREN atua (Brasilândia, Grajaú, Jardim Ângela, Cidade Tiradentes e Lajeado) ou onde as duas unidades físicas estão (Vila Mariana e Vila Jacuí). Deve-se reconhecer no agricultor local um parceiro do território para futuras articulações e trabalhos em parcerias, no fortalecimento de uma cultura alimentar adequada e sustentável para a comunidade e não somente uma relação comercial. Composição da sacola de hortifrútis: A composição levou em consideração o valor nutricional dos alimentos, a diversidade e a disponibilidade para atender a demanda do CREN, com flexibilização da composição da cesta de acordo com a produção de cada agricultor. A composição básica compõe os seguintes produtos orgânicos: uma verdura para salada (por exemplo alface); 1. uma verdura para refogar (por exemplo almeirão, couve); 2. um folha de tempero (por exemplo cebolinha, coentro); 3. uma PANC (por exemplo ora-pro-nóbis); 4. 2kg de fruta, que poderá ser adquirido do fornecedor convencional, caso o agricultor familiar não o possua; 5. 1kg de legume, que poderá ser adquirido do fornecedor convencional, caso o agricultor familiar não o possua; Tempo do projeto: 8 meses Recolhimento das sacolas: CREN, através de motorista com veículo destinado à essa função. No caso de eventuais frutas e legumes adquiridas do fornecedor convencional, elas serão entregues ao CREN pelo fornecedor. Distribuição das sacolas para os beneficiados: CREN, através de visitas domiciliares de equipe multiprofissional (ao menos dois profissionais de nível superior). Durante a entrega, foi apresentado produto e sua procedência, juntamente com orientações e receitas para uso das PANCs e convite para se acessar material online.

Atores envolvidos (institucionais e/ou coletivos)

Parceiros: Instituto Kairós, como ponto focal a articuladora Regiane, facilitadora no encontro com os agricultores familiares urbanos dos distritos onde o CREN atua; agricultores presentes nos distritos de atuação do CREN (Mulheres do G.A.U., Ângela de Cara Limpa, Agência Solano Trindade, Horta da Terezinha e Horta da Sebastiana).

Estratégias

O projeto foi concebido em 3 fases a saber: Fase I – Piloto A fase I do projeto foi realizada em parceria com Viveiro Escola, localizado em União de Vila Nova na Vila Jacuí, próximo (menos de 1km) à unidade do CREN da Zona Leste, elegido pela proximidade geográfica e pelo vínculo prévio em ações conjuntas anteriores. O Viveiro Escola é coordenado pelas Mulheres do G.A.U. (Grupo de Agricultores Urbanas) sob a supervisão da CDHAU. Para o projeto piloto, a ação foi desenhada em duas etapas: a primeira, uma sacola com alimentos in natura foi entregue pela equipe do CREN em visita domiciliar junto com a apresentação do projeto. Na segunda, como forma do beneficiado conhecer o local, foi proposto que a família retirasse no Viveiro, durante as três semanas seguintes, sempre às quartas-feiras, a sua sacola de hortifrúti. A composição da sacola levou em conta o que o produtor já cultivava e conteve: uma verdura para salada (alface), uma verdura para refogar (almeirão ou couve), uma folha de tempero (cebolinha ou coentro) e uma PANC (ora-pro-nóbis). Para completar a sacola foi acrescentado, na primeira semana somente, 1,5 kg de beterraba e 1,5kg de laranja, adquiridos de fornecedor convencional. Foram selecionadas 16 famílias que moravam na região, já estavam em tratamento no nosso programa e atendiam aos critérios de vulnerabilidade social e de diagnóstico. Em conexão com o trabalho educativo que compõe o tratamento do desvio nutricional primário, entregamos a primeira sacola às famílias através de visitas domiciliares. As visitas foram feitas por dois profissionais de nível superior de nossa equipe que, acompanhando e orientando, quando necessário, questões relativas ao tratamento do desvio nutricional, realizavam a entrega da sacola de hortifrúti apresentando os produtos que ela continha, o seu armazenamento e consumo e explicavam a parceria do Viveiro com o CREN. A família também foi convidada a retirar, nas três semanas seguintes (sempre às quartas-feiras), as sacolas no próprio Viveiro. Para as famílias que não conheciam o local foi entregue um mapa e feita uma breve explicação do Viveiro. Fase II – Ampliação Contando com auxílio do Instituto Kairós, foi feito contato com outros produtores nas zonas leste, sul e norte de São Paulo, em territórios em que as equipes do CREN atuam, e que fossem caracterizados como agricultores familiares e com horta orgânica ou de transição. Duas dificuldades encontradas, e que infelizmente acabaram se tornando critério de exclusão, foi a falta de estrutura administrativa de alguns agricultores que por conta dessa situação não conseguiam emitir nota fiscal e distância do agricultor em relação à unidade do CREN, que inviabilizava a recolhimento das sacolas. Entre os meses de maio à julho foram feitos os contatos e estabeleceu-se parceria com quatro produtores, além de se manter a parceria com o Viveiro. Foram eles: Agência Solano Trindade, no Campo Limpo; Ângela de Cara Limpa, no Jardim Ângela; Sebastiana e Terezinha em São Mateus A composição da sacola de hortifrútis foi mantida como na fase I: uma verdura para salada, uma verdura para refogar, uma folha de tempero e uma PANC. Assim como, foi mantida também a forma de entrega: visitas domiciliares de acompanhamento e orientação compostas de pelo menos dois profissionais de nível superior, apresentação da sacola e de seus itens, orientação de armazenamento e de sugestões de preparo. Em função da pandemia, que limita o contato e o tempo de exposição dos profissionais junto às famílias, as sugestões de alimento não eram feitas no tempo adequado. As sacolas de hortifrútis adquiridas dos agricultores familiares foram completadas com legumes e frutas (1kg de cada) oriundos dos nossos fornecedores convencionais. Fase III – Consolidação A fase III, desenvolvida entre setembro a dezembro de 2020 teve como objetivo a manutenção, consolidação e sustentabilidade do que já foi alcançado. E também o aprimoramento de pontos identificados como carentes de melhoria nas fases I e II, a saber: logística de coleta e armazenamento dos hortifrútis; informação e educação do beneficiado à alimentação saudável; sugestões de preparo de Plantas Alimentícias Não Convencionais, através de receitas impressas e vídeos visando a sensibilização para o seu consumo.

Resultados alcançados

Fase I: Observou-se que a adesão das famílias na retirada de alimentos direto no viveiro foi baixa e foi necessário que a equipe do CREN recolhesse as sacolas não retiradas pelas famílias e as redistribuísse em outros territórios. Em contato posterior, as famílias justificaram a não adesão de maneiras variadas: desde “esquecimento” até medo de sair de casa em função da pandemia, o que a equipe considerou justo. Assim, essa etapa foi abolida, neste momento, da metodologia do projeto. Observou-se também nos relatos das famílias que os hortifrútis foram apreciados e entrega da sacola vista como positiva. Mesmo a PANC despertou curiosidade e foi relatado, espontaneamente, o seu uso junto com omelete, conforme sugestão da equipe. Em termos numéricos, foram distribuídas 64 sacolas, entre os dias 29/04 e 20/05, e 45 famílias (77 pessoas) receberam ao menos 1 sacola de hortifrúti. Fase II: Importante destacar a diferença entre os agricultores das zonas leste e sul com os quais estabelecemos parcerias: os da zona sul se caracterizam como cooperativas, que tem outras frentes de atuação na comunidade além da horta e prestam conhecimento técnico para o plantio de orgânico; os da zona leste tem menor atuação cooperativa entre si. Entre os dias 01/06 e 31/08 foram distribuídas 890 sacolas beneficiando 465 famílias. Segundo dados apresentados pelo projeto Ligue os Pontos, conveniado pela prefeitura municipal de São Paulo, mais de 80% dos agricultores da zona sul da cidade cultivam em terreno com menos de 5 hectares. O contato que tivemos com os agricultores nas fases I e II do projeto corroboram esse índice. Isso significa uma área muito pequena, levando o produtor a optar por alimentos que tenham maior taxa de rotatividade, i.e, menor tempo de plantio. Com isso, uma primeira dificuldade encontrada por nós foi a aquisição de frutas e legumes junto a esses agricultores, sendo necessário recorrer aos fornecedores ordinários. Como também mostrado pelo Ligue os pontos e pela nossa experiência inicial, a maioria dos agricultores estão em zonas periféricas da cidade, sendo necessário percorrer muitos quilômetros para chegara até eles. Essa distância teve um impacto significativo na fase II do projeto, pois ou não foi possível fazer a parceria ou só era possível buscar os hortifrútis uma vez na semana, o que, por sua vez, impacta na distribuição desses insumos para os beneficiados, que não os recebem frescos. Outro desafio foi o armazenamento dos hortifrútis. Como os hortifrútis são distribuídos através de visitas domiciliares, essas, por levarem tempo e exigir a presença da equipe técnica, ocorrem ao longo dos dias da semana atingindo um pequeno restrito de beneficiados por visita. Por outro lado, como se trata de folhagem, a sua perecibilidade é alta e elas não suportam muito tempo sem refrigeração. Por fim, o último desafio encontrado é relativo ao agricultor que, por vezes, não conta com estrutura e conhecimentos administrativos adequados. Fase III • Em 2020, desde o início do projeto em abril até dezembro foram entregues 2581 sacolas de orgânicos e beneficiaram 910 famílias; • Foram direcionados R$ 34.000,00 para a agricultura familiar urbana; • Foram produzidos 3 vídeos, 1 catálogo de PANCs e um livreto de receitas; • Realizadas 20 horas de articulações com agricultores, entre visitas e telefonemas; • Participação do projeto Ligue os pontos com o reconhecimento da rede com o selo Sampa+Rural

Considerações finais

Em 2021, observou-se a piora da pandemia e a suspensão do auxílio emergencial, o que agravou a situação de Insegurança alimentar das famílias assistidas pelo CREN, somado ao fechamento dos equipamentos de educação. O Cultivando Horizontes passou a compor as estratégias de cuidado alimentar e nutricional que o CREN oferece aos seus pacientes e famílias em atendimentos domiciliares e ambulatoriais, com um olhar ampliado da saúde e praticado de forma territorial. O apoio ao agricultor familiar urbano, em especial ao produtor de alimentos orgânicos, se manteve a médio prazo, o que possibilita melhor planejamento e organização por parte do agricultor e redução do uso de agrotóxicos. O CREN oficializou a captação de recursos para sustentabilidade do projeto em sua rede. Como desafios do projeto, permanece ainda a distância entre alguns pontos de produção e o CREN e a baixa produção de frutas e legumes.