Nosso trabalho atinge populações vulneráveis de Porto Alegre e periferia, além de aldeias indígenas do nosso entorno. O ponto de partida é o território da Aldeia Cebb, na Estrada Caminho do Meio, confluência dos municípios de Viamão e Alvorada. Trata-se de uma área de 16 hectares, com cerca de 50 famílias que solucionamos muitos de nossas necessidades coletivas pelo método da autogestão. Nesse contexto, inovações podem ser testadas sem obstáculos burocráticos. Nossas vizinhas são as comunidades de Vila Augusta, Jardim Castelinho e Stella Maris, consideradas por muitos portalegrenses como lugares “perigosos” ou apenas “dormitórios” de trabalhadores urbanos. Da Região metropolitana de Porto Alegre, o município de Viamão (256 mil habitantes aprox.) é o maior em extensão. No século XVIII, foi a primeira capital do Rio Grande do Sul e teve destaque como início das rotas de comerciantes “tropeiros”, que chegavam até São Paulo. Viamão se caracteriza hoje por uma importante diversidade humana, com aldeias indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, descendentes de migrantes europeus, entre outros. Contamos com uma ampla área rural, com famílias que se dedicam à agroecologia, prática considerada regenerativa para a biosfera. Também há espaço para iniciativas autogeridas de economia solidária, como feira de trocas e local para a integração trocas/reciclagem.
Quando foi decretado lockdown, entendi que seria necessário um esforço prolongado de enfrentamento da insegurança alimentar. Analisei a sistemática de várias iniciativas de distribuição de alimentos e percebi que o foco eram os “não perecíveis”, ou o que se convencionou chamar de “itens da cesta básica”, o que afasta dos cardápios as verduras, legumes, raízes e frutas. Chamou minha atenção que boa parte da riqueza oferecida pelo mundo dos vegetais fosse reduzida ao rótulo de “perecível”, quase ao ponto de parecer um luxo. Também me pareceu preocupante a impossibilidade de participação do movimento agroecológico, já que grande parte de sua produção se encontra sob a categoria de “perecível”. Compreendi que deveríamos criar um banco de alimentos que priorizasse exatamente o que faltava na cesta básica comum e que gerasse uma maior conexão entre os produtores agroecológicos e as populações vulneráveis.
O Banco de Alimentos das Comadres tem o objetivo de levar alimentação rica em verduras, legumes, raízes, frutas e plantas alimentícias não-convencionais (PANCs) produzidas em sistema agroecológico a pessoas em situação vulnerável, de forma solidária e autogerida. Nossos públicos-chave são as aldeias indígenas do entorno e pessoas LGBT cadastradas pela Igualdade RS, organização não-governamental de Porto Alegre. Também participamos de ações eventuais junto a moradorxs de rua, arrecadamos recursos para a compra de cobertores durante o inverno e buscamos fortalecer o movimento indígena do Rio Grande do Sul em demandas não-restritas à alimentação.
A autogestão é a essência da nossa metodologia.
Somos vizinhas comprometidas com o pensamento de que verduras, legumes, frutas e PANCs são fundamentais para uma alimentação de qualidade e precisam estar ao alcance das populações vulneráveis. Para cumprir nosso objetivo, organizamos as seguintes atividades:
*observação participativa nas vidas das comunidades, para detectar necessidades e ouvir demandas;
* captação de recursos em nossa rede de doadorxs/apoiadorxs;
* articulação com produtoras e produtores rurais do município de Viamão para o fornecimento dos alimentos a um custo viável;
* logística de distribuição rápida aos diferentes públicos, para evitar perda de qualidade;
* registro da entrega dos alimentos para dar retorno às doadoras e doadores;
* diálogos de avaliação, reflexão e tomada de decisão.
* Produtores rurais agroecológicos do Assentamento Filhos de Sepé (MST), em Viamão
* ONG Igualdade RS e população LGBTQIA+ cadastrada para o recebimento de alimentos
* população das Aldeias Mbyá Guarani, principalmente no Cantagalo ( Viamão) e região de Maquiné
* moradorxs de rua da cidade de Porto Alegre, atendidxs nas saídas do projeto Zero Fome nas Ruas
Usarei o “x” como indicação de que mulheres e homens se envolveram nas estratégias que descreverei.
* Mapeamento de apoiadorxs: identificamos uma rede de apoio composta por doadoxs, divulgadorxs, motoristxs e articuladorxs do Banco de Alimentos das Comadres junto aos grupos beneficiados.
* Adotamos um padrão de comunicação com cada pessoa doadora, buscando transmitir confiança quanto ao destino dos recursos. Segue uma forma simples de representar este padrão:
Pedido –> Ação –> Retorno –> Balanço parcial
Detalhe: na ação de Retorno, buscamos incluir áudios, fotos e/ou registros nas redes sociais.
* Para potencializar o esforço de arrecadação, realizamos vendas beneficentes que captam especialmente as pequenas doações (até 50 reais). Organizei minha cozinha de modo a gerar pelo menos quatro vendas por mês (sagu de uva e chocolate quente vegano). No meio do ano realizamos a primeira rifa e estamos avaliando a possibilidade de lançar uma rifa de Natal.
* Participo das iniciativas de nossas parcerias da sociedade civil (Igualdade RS e Movimento Sem-Terra) mesmo fora do tema alimentação, como forma de estreitar vínculos. No contexto da pandemia, as “Lives” nas redes sociais surgiram como forma de contato.
* Praticamos apoio mútuo nas relações com iniciativas da sociedade civil que florescem no entorno, como a Casa da Sopa, no Jardim Castelinho, e o Justa Troca, na Vila Aparecida.
* Nossas opções pessoais de consumo privilegiam os empreendimentos da rede de apoiadorxs (alimentos, cosméticos, limpeza, medicina natural etc), o que também favorece os vínculos.
Ações em andamento
* primeiro livro-caixa do Banco de Alimentos das Comadres, com o detalhamento de todas as entradas e saídas;
* elaboração de pesquisa com vistas à criação de indicadores de eficiência das ações do Banco de Alimentos das Comadres;
* busca de parcerias para a realização de oficinas de cozinha no modelo “faça-e-venda”, para contemplar o aspecto de geração de renda nas comunidades;
*busca de parcerias para a realização de oficinas de ciclo de alimentos, para contemplar o aspecto de autonomia na produção entre o público que dispõe de espaço para horta e compostagem;
* criação de conta no site Pixelfed.social, plataforma de código aberto com alta capacidade de armazenamento, para organizar a memória digital da nossa iniciativa;
* investimento no aprendizado de linguagens de caráter regenerativo, recomendável em tempos difíceis, com as sociedades dolorosamente fraturadas em grupos políticos e a difusão sistemática de mentiras disfarçada de “informação”. Nesse contexto, obtive uma bolsa de estudos no Non-Violent Communication Centre (Texas, Estados Unidos).
As comadres receberam treinamentos diversos na ferramenta Diálogos Apreciativos e em meditação.
Quanto aos dados, movimentamos aproximadamente 10 mil reais em um ano e meio. Calculamos o número de beneficiados em torno de 3 mil pessoas, somados todos os públicos atendidos. Evoluímos de um pequeno grupo de três vizinhas que se tratam por “comadres” para uma rede com cerca de 20 pessoas, incluindo apoiadorxs de outros estados.
No aspecto qualitativo, as sondagens informais que realizamos junto às nossas parcerias indicaram boa aceitação dos alimentos. Na visão de parceirxs da Igualdade RS, o oferecimento de verduras, legumes, frutas e PANCs valoriza a cesta distribuída à população LGBTQIA+ em termos nutricionais, enquanto a procedência agroecológica valoriza o contexto das relações socioambientais. Nas aldeias indígenas, encontramos muita resistência cultural a verduras como alface e rúcula; por outro lado, houve muitos pedidos por mais raízes (oferecemos em geral cenouras, batatas e inhames). Uma farta doação de abacates foi motivo de muita dúvida no grupo de apoio, sem que ninguém soubesse ao certo qual seria a reação dos Mbyá. Levadas por uma das comadres para ser o cardápio de um mutirão na Tekoa Anhentenguá, na localidade de Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, as frutas fizeram muito sucesso. Nossa parceria Janice Pacheco, da iniciativa Zero Fome nas Ruas, apresentou o feedback que mais nos surpreendeu: os pratos com saladas e a inclusão de alimentos como abóbora e quiabo nas marmitas teve boa aceitação entre moradorxs das ruas de Porto Alegre. Com doações de PANCs produzidas no sistema agroflorestal do nosso território Aldeia Cebb, Janice se sente à vontade para criar novidades, como a Pizza de Flor Capuchinha.
As principais dificuldades têm como pano de fundo a crise econômica. Foi necessário reduzir as saídas, devido ao aumento nos preços dos combustíveis. As atividades que dependem do uso intensivo de banda larga, como alguns cursos e seminários online, também passaram por redução, ou, no caso da construção da página web, deixaram de ser prioritárias.
Consideramos inovadora nossa experiência de priorizar alimentos produzidos em sistema agroecológico por famílias do nosso entorno, com destaque para verduras, legumes, frutas e a inclusão de plantas alimentícias não-convencionais, na distribuição gratuita e solidária para pessoas vulneráveis no contexto da pandemia de COVID19.
Os pontos mais significativos são os seguintes:
* promoção do consumo de verduras, legumes e frutas de forma solidária entre pessoas vulneráveis, que não teriam como obtê-los nos sistemas usuais de doação/distribuição de alimentos;
* criação de vínculos de apoio mútuo entre nós, comadres, os diferentes públicos atendidos e as parcerias da sociedade civil;
* estimular nas crianças atendidas o desenvolvimento de memória afetiva ligada às verduras, legumes, frutas e PANCs, o que poderá contribuir para melhor saúde e qualidade de vida no futuro.
Com a ampliação das ações e a aferição qualitativa e quantitativa de seus resultados, chegaremos à descrição de boas práticas, que poderão ser adotadas por outras iniciativas em contextos semelhantes.
Por enquanto, temos a relatar as seguintes lições:
* nunca perder a oportunidade de criar vínculo ou parceria com iniciativas ou organizações que compartilham o mesmo espaço físico ou simbólico, pois é dessa rede de relações positivas que brotam os apoios;
* valorizar a “comida de verdade”, os ingredientes de qualidade produzidos localmente e a sazonalidade;
* levar em consideração as conexões com a ancestralidade e o sistema de tradições vigente no grupo que se quer beneficiar;
* estimular o conhecimento do ciclo do alimento, desde a semente até a compostagem de resíduos, adotando um padrão de aproveitamento máximo.
Observação 1: Gostaria de deixar registrado que não tenho certeza se as fotos que anexei a esse formulário estão visíveis, já que da última vez que apertei o botão surgiu uma mensagem: “You not allowed to do this”. De qualquer forma, as mesmas imagens estão presentes em nossa página https://pixelfed.social/comadresnaluta
Observação 2: Dispomos de depoimentos e cartas de recomendação para comprovar os detalhes da experiência.