O Centro de Atenção Psicossocial II do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (CAPS HPCA) é um serviço de tratamento para adultos que sofrem com transtornos mentais cuja severidade justifique sua permanência em um dispositivo de cuidado intensivo, comunitário e personalizado. O CAPS é um componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e tem como objetivo estimular a integração territorial, social e familiar, apoiando o usuário em suas iniciativas de busca de autonomia.
Nos últimos anos, o CAPS HPCA recebeu uma grande demanda de usuários com idades entre 18 e 24 anos, geralmente ainda em investigação diagnóstica ou após a primeira hospitalização psiquiátrica. Com a prática, percebemos que esses jovens, e suas famílias, chegavam ao CAPS sem compreender o que lhes acometia e com incertezas em relação ao futuro. Muitas vezes, ao chegarem no serviço, não tinham ouvido falar em transtorno mental, não sabiam dos dispositivos da rede e, não raro, estavam assustados. Às vezes, devido à agitação, policiais haviam entrado em cena para contê-los; alguns tinham a experiência de passarem por emergências psiquiátricas superlotadas e sem recursos necessários para atendimento adequado. Os jovens não sabiam o que era ter um transtorno mental e, muitas vezes, possuíam fantasias a respeito desses transtornos e do que era um tratamento psiquiátrico.
Desse modo, jovens, ao chegarem no CAPS, demonstravam dificuldades em se integrar ao grupo de usuários, ficando isolados nos corredores ou no pátio do serviço. Percebiam-se diferentes, verbalizando o desconforto em permanecer junto aos adultos. Notávamos que ficavam assustados e demonstravam até certa aversão aos adultos, em um fenômeno que denominamos “ele sou eu amanhã”, ou seja, ao se depararem com pessoas mais velhas, com transtornos já em um estágio de evolução e que muitas vezes não fizeram o tratamento adequado, os jovens se assustavam e não queriam pertencer àquele lugar, como se pensassem: “eu não quero ficar assim, então não quero vir aqui, nem pertencer a esse grupo!”.
Construindo o caminho para a autonomia
Além das demandas do transtorno mental, esses jovens estavam lidando com as questões próprias da faixa etária, como desenvolvimento da identidade, exploração de possibilidades de ser no mundo, diferenciação da família (às vezes, com muitos conflitos), procura de trabalho, escolhas amorosas, entre outras questões típicas da juventude.
Toda essa realidade, difícil e conflituosa por si só, mesclava-se com questões do transtorno mental, que, muitas vezes, colocava-os em uma situação de passividade e de espera pelo tratamento, por alguém que dissesse o que era melhor para suas vidas – movimento oposto ao que se espera de jovens que estão buscando sua autonomia e se descobrindo.
Nossa primeira dificuldade na implementação do grupo foi a escassez de literatura específica sobre grupo terapêutico com jovens com transtorno mental crônico, e o impacto dessa modalidade de tratamento na recuperação e adaptação ao transtorno, que pudesse nortear nossa proposta. Utilizamos a literatura disponível sobre grupos, jovens e sobre indivíduos com transtorno mental para fomentar nossa imaginação e capacidade criativa para conectar esses temas e planejar uma atividade que contemplasse as necessidades e anseios dessa população.
Assim, o próximo passo foi sensibilizar a equipe do serviço. O CAPS HCPA funciona com uma equipe multidisciplinar, composta de assistente social, educador físico, enfermeiros, psiquiatras, psicólogos, técnicos de enfermagem e terapeutas ocupacionais. Como se trata de um serviço vinculado a um hospital escola, estudantes de diversos níveis colaboram no cotidiano do CAPS: desde alunos de graduação até alunos da residência, tanto médica como multiprofissional. A reunião de equipe tem em torno de 25 pessoas, de diversos núcleos profissionais e graus de formação. Como em toda equipe, encontramos pessoas mais abertas a ideias novas e outras mais resistentes.
Essa foi a realidade que encontramos: alguns colegas argumentavam que não achavam justo oferecermos um grupo somente para os mais jovens, que isso seria limitar o acesso de outros usuários que, apesar de terem mais idade, ainda estavam com conflitos típicos desta faixa etária; outros falavam que o contato com diferentes faixas etárias era benéfico para os envolvidos; e outros ainda mencionavam que não ia dar certo, porque estes jovens não queriam tratamento e que nossos esforços seriam em vão. Tivemos que ser firmes, explicar sobre o fenômeno do “ele sou eu amanhã”, falar das necessidades específicas dessa idade e solicitar um voto de confiança.
Dramatizando para aprender
Apesar das dificuldades, conseguimos compor o grupo, inicialmente, com 10 usuários. Era um grupo fechado e planejado, com 16 encontros, o que também era uma inovação, visto que, no CAPS, os grupos tendem a ser contínuos e abertos, compondo um cronograma de atividades fixas. Devido às resistências da equipe, tivemos que fazer o primeiro grupo em um horário não muito “nobre”, o que não favoreceu a presença dos usuários no serviço. Mesmo assim, seguimos em frente e formamos um grupo de 6 usuários assíduos.
Pensando no desenvolvimento do grupo, utilizamos várias estratégias e dinâmicas para construir o vínculo e, assim, conseguimos avançar, o que exigiu muita escuta, envolvimento e empatia.
Iniciávamos os encontros com alguma breve explanação sobre um determinado assunto e, em seguida, estimulávamos as trocas entre as pessoas do grupo sobre o que havíamos apresentado. Os temas abordados eram elencados com os usuários, de acordo com suas necessidades e interesses. Os mais recorrentes eram os do início da vida adulta: autoconhecimento, relações familiares e amorosas e uso de psicofármacos. O próprio ato de falar para o grupo era um desafio para eles, tão acostumados a terem um papel de coadjuvantes na vida. Foi preciso aguentar os silêncios, muitas vezes angustiantes, para que os jovens se sentissem confortáveis a participar.
Para estimularmos a fala e a troca entre eles, propusemos atividades de produção de recursos gráficos (como desenhos e colagens) e, principalmente, a técnica de role play (encenações de situações cotidianas em um ambiente controlado e assistido), que possibilitou aos jovens praticarem e desenvolverem novas formas de resolução de conflitos e problemas, a partir de situações simuladas.
E.D era um usuário que tinha conflitos, principalmente financeiros, com a irmã, pessoa com quem morava e era sua principal cuidadora. A irmã administrava todo o seu benefício, o que ele percebia como uma agressão e uma retirada de autonomia. No entanto, seu comportamento com a irmã não colaborava para uma mudança nessa situação. Ele era agressivo ou evitativo. Por vezes, discutia com ela, xingava; ou trancava-se no quarto, rompendo o diálogo. Através da técnica de role play, o grupo pôde encenar possíveis alternativas de resolução de problemas, aumentando o repertório de respostas do usuário. Após três encontros e algumas tentativas de diálogo, E.D relatou que conseguiu sentar e conversar efetivamente com a irmã, quando esta pôde falar do quão difícil era assumir a responsabilidade de ter que cuidar do dinheiro dele e do quanto não se sentia reconhecida por isso. A irmã explicou quanto do dinheiro era para auxiliar na conta de luz e gás, quanto era para comprar mantimentos, etc. E.D, por sua vez, pôde expressar seus sentimentos, anseios e planos para o futuro e, juntos, combinaram uma quantia que ficaria sob responsabilidade de E.D. Assim, ele pôde se ensaiar em como administrar dinheiro, elencar prioridades, fazer economias, etc.
Uma função importante da dramatização foi que ela permitiu o desenvolvimento da empatia. O usuário cuja história estava sendo encenada tinha acesso à perspectiva de outros envolvidos na situação, pela voz de um colega, o que facilitava a compreensão do que estava acontecendo. Os demais membros do grupo desempenhavam papéis de outras pessoas na situação, e podiam falar para o usuário como estavam se sentindo frente à determinada atitude, oferecendo uma devolutiva das ações encenadas.
Com esses recursos, tivemos acesso à expressão do sofrimento e das vivências geradas pelos transtornos mentais e construímos estratégias para o seu enfrentamento. O grupo terapêutico mostrou, então, a que veio. Fomentando discussões e propiciando a capacidade de se enxergar no outro, começou-se a pensar sobre novas possibilidades de enfrentamento do transtorno e do fortalecimento de vínculos. No encerramento deste grupo, foi elaborado um painel para retratar sentimentos e impressões que os usuários tiveram no transcorrer da atividade. Com essa ação, buscávamos promover a identidade do grupo, o fortalecimento dos vínculos e o desenvolvimento de recursos emocionais.
Os ganhos do grupo apareceram em outras atividades do CAPS e no relato da equipe, que se mostrava cada vez mais receptiva ao nosso trabalho, valorizando-o. Observavam maior tranquilidade em relação ao diagnóstico e ao tratamento, com melhor adesão dos usuários às consultas e ao projeto terapêutico.
Acreditamos que o formato grupal se mostrou relevante para fomentar relações e estimular o cuidado com os pares, auxiliando na reflexão sobre o significado de ter um transtorno mental. Além disso, foi observado maior envolvimento com a rede de apoio, tanto familiar como de amigos, reconhecendo a importância desse fator protetivo.
Com o autoconhecimento e adesão ao tratamento, houve melhora importante em alguns sintomas, como alucinações e delírios. Entretanto, os jovens permaneciam retraídos e com dificuldade nas interações sociais. Assim, percebemos a necessidade de realizar um trabalho ainda mais focado, abordando a demanda específica do treinamento de habilidades sociais, o que nos levou a formar um segundo grupo – o grupo de Treinamento de Habilidades Sociais para adultos jovens com transtorno mental.
Lições aprendidas:
Os jovens, ao ingressarem no CAPS, percebem-se diferentes dos demais usuários, verbalizando desconforto em permanecerem com os adultos, pois além das demandas do transtorno mental, estão lidando com as questões próprias da faixa etária;
A criação de grupos terapêuticos exclusivos para essa população incentiva a identificação entre os membros, o que tende a facilitar a livre expressão de ideias e sentimentos;
Ao se trabalhar com jovens, é importante que os temas a serem abordados sejam elencados com os usuários, de acordo com suas necessidades e interesses.
As técnicas de dramatização (role play) e o uso de recursos gráficos têm uma boa aceitação por essa população, aumentando o engajamento do jovem, fomentando a auto-estima e promovendo qualidade de vida.