O evento promovido pelo Cebes finalizou com uma agenda para a transformação rumo à conquista do direito universal à seguridade social e à saúde na América Latina.
A disputa severa entre o setor público e privado esteve presente em praticamente todas as falas do 1º Encontro Construção e Fortalecimento de Sistemas Universais de Saúde nos Países Latino-Americanos, realizado nos dias 30 e 1º de julho em Brasília. Apesar da diversidade e dos aspectos culturais, a necessidade de sistemas de saúde gratuitos, universais e igualitários é uma pauta comum entre os países que participaram do evento.
O evento foi promovido pelo Cebes – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Ministério da Saúde e OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde, com a proposta de estabelecer conexões, fortalecer e promover alianças entre pessoas, organizações e governos interessados em processos de reforma de seus sistemas de saúde, com o principal objetivo de torná-los cada vez mais alinhados e democráticos em acesso e serviços.
O encontro gerou uma série de propostas e intenções estabelecidas em uma carta final que também será levada para a 17ª Conferência Nacional de Saúde que acontece até quarta-feira (5), em Brasília.
Aqui abaixo o documento completo aprovado em plenária pelos representantes do Brasil, México, República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai.
Agenda para a transformação rumo à conquista do direito universal à seguridade social e à saúde na América Latina
Os participantes do Encontro Latino-Americano sobre Construção e Fortalecimento de Sistemas Universais de Saúde Inclusivos e Sustentáveis aprovam a seguinte declaração apresentando uma agenda de transformações para a conquista do direito universal à seguridade social e à saúde na América Latina:
Reconhecendo a persistência de desigualdades sociais que se expressam na América Latina, notadamente no âmbito da saúde;
Reconhecendo que estas desigualdades no âmbito da saúde no continente têm raízes históricas, culturais, geográficas, políticas, econômicas e sociais e se interseccionam com a classe, a raça, a etnia e o gênero;
Reconhecendo que os processos saúde-doença na América Latina possuem determinações sociais próprias, associadas às históricas relações entre o Norte e o Sul globais que devem ser levadas em consideração e que se expressam em cada território de forma particular;
Considerando que um sistema público universal em saúde requer instituições educativas comprometidas com a formação crítica, participativa e solidária;
Cientes da importância da democracia e da participação social na construção de sistemas de saúde igualitários e universais, bem como da construção coletiva de uma consciência crítica sobre o direito à saúde;
Constatando o papel da relação entre o capitalismo financeirizado e o Estado nesse contexto histórico de consolidação do setor privado na saúde, desde o advento do complexo médico-industrial transnacional na região e especialmente a partir do regime de apropriação do conhecimento através de direitos de propriedade intelectual e da hegemonia neoliberal;
Constatando que as políticas econômicas neoliberais adotadas a partir das décadas de 1980 e 1990 em toda a região aprofundaram as desigualdades sociais e consolidaram a inserção do setor privado nos sistemas de saúde, não só através da entrega de recursos públicos a administradores privados, mas também a entrega da gestão e da prestação de serviços a sistemas privados;
Considerando que a proposta de cobertura universal combinada ao fomento do setor privado resultou na segmentação e fragmentação dos sistemas de saúde, produziu serviços públicos de baixa qualidade para as classes sociais desfavorecidas e avançou em direção à privatização estrutural da gestão dos recursos públicos e prestação de serviços por agentes privados;
Considerando as limitações dos sistemas de seguridade social nos países da América Latina, os quais com altas taxas de desemprego e informalidade, precisam ter seu financiamento garantido por fundo público de base social, não dependente de contribuições do trabalho;
Reafirmando os princípios de Alma-Ata, que preveem o papel central da Atenção Primária em Saúde (APS) na garantia do acesso integral, territorial e intercultural a serviços de saúde e a transformação das condições de vida das populações;
Considerando que a consagração do direito fundamental à saúde por toda região deve ser entendida como um bem comum, em uma construção social do cuidado da vida humana e não-humana em interdependência, para além da atenção à saúde e independente do poder aquisitivo das pessoas;
Considerando os diversos povos, nações e culturas que habitam o continente, em especialmente a população indígena, que requerem um modelo de saúde que leve em consideração outros saberes e conceitos de saúde para além do modelo biomédico e suas cosmovisões ao redor do bem viver, que constituem uma mensagem de transformação profunda da relação entre a natureza e a sociedade que deve ser reconhecida como uma alternativa ao modelo de desenvolvimento hegemônico;
Considerando a intensificação de conflitos violentos, narcotráfico e guerras decorrentes de disputas imperialistas e de modelos capitalistas extrativistas;
Considerando que o modelo de desenvolvimento econômico dominante sob a lógica do lucro, tem provocado desastres como a crise climática, sanitária, fome, insegurança alimentar e crise migratória, ameaçando a continuidade da vida no planeta.
Neste contexto:
Conclama os Estados da América Latina a construir um caminho para transformar nossas realidades sociais a partir do cuidado coletivo da vida humana e não-humana, para que seja possível avançar na construção de sistemas integrais de proteção social que articulem políticas públicas universais e, ao mesmo tempo, interculturais baseadas na solidariedade, na dignidade e no reconhecimento da diversidade da vida;
Afirma a necessidade de expandir o financiamento de um sistema público universal de saúde de forma sustentável baseado em sistemas tributários progressivos integrados à recuperação dos aportes à seguridade social e à administração pública dos recursos, de forma democrática, transparente e com garantias constitucionais dos recursos necessários;
Urge que os Estados latino-americanos invistam na infraestrutura dos serviços públicos, com financiamento adequado integrado em redes socio sanitárias;
Ressalta que um sistema público universal de saúde centrado no marco do cuidado à vida e integrado à proteção social de forma mais ampla requer trabalhadores da saúde bem remunerados, com condições de trabalho dignas, estáveis e educação permanente que permitam a manutenção do compromisso com a garantia dos direitos dos indivíduos e comunidades;
Fomenta o reconhecimento e o investimento na ciência e nos diversos tipos de conhecimento a fim de assegurar a provisão de insumos e tecnologias relevantes para a saúde, incluindo a priorização e o fortalecimento da produção pública nacional e a integração regional para assegurar a soberania sanitária e reduzir a dependência da indústria privada e do Norte global;
Ressalta a necessidade de investimentos específicos visando para incluir a América Latina no complexo produtivo da saúde, não apenas como fornecedora de matérias-primas, mas como produtora de vacinas, biofármacos, insumos e fitoterápicos, com ampla inclusão e valorização dos saberes e expertises das populações tradicionais e dos povos originários, do potencial científico e tecnológico em ampla cooperação entre os países da região;
Celebra a diversidade cultural e territorial dos povos latino-americanos e reforça a necessidade de se produzir uma verdadeira interculturalidade que dialogue e co-construa transformações a partir de sistemas de conhecimento diversos, numa perspectiva decolonial;
Referenda uma proposta de transformação dos sistemas de saúde que supere o modelo biomédico hegemônico, garanta os princípios da universalidade, integralidade e igualdade, com prioridade para promoção e prevenção em redes regionalizadas de atenção integral, ordenadas pela atenção primária em saúde integral e que garanta acesso aos serviços e tecnologias adequados em todos os níveis de atenção de qualidade;
Reitera a necessidade de assegurar a saúde como um direito humano inalienável, que reduza desigualdades e aperfeiçoe as respostas às diferentes necessidades em saúde, considerando a transformação dos processos que produzem e reproduzem a matriz de relações injustas, desiguais e neocoloniais no ordenamento mundial;
Apoia a criação de um observatório para monitorar o grau de privatização em saúde e para promover a desprivatização dos sistemas de seguridade social e saúde na América Latina;
Conclama os Estados a garantir a participação real e efetiva das comunidades e populações na tomada de decisão e na articulação rumo às transformações efetivas que combatam os processos que deterioram a vida e conduzam ao “bem-viver” e o cuidado com o meio-ambiente;
Propõe a criação de um fórum latinoamericano pelo direito universal à saúde constituído por representantes de povos e governos da região para fins de intercambiar sistematicamente análises da situação de saúde nacionais e subnacionais, assim como para articular e complementar políticas públicas e mecanismos de participação popular de saúde;
Insta a não esquecer as lições da pandemia, que não interessam ao capitalismo do desastre, que surgem de soluções solidárias, coletivas e públicas que salvaram vidas;
Conclama a promoção da paz e da justiça social para superar guerras e conflitos violentos;
Reforça a necessidade de aproveitar as oportunidades do contexto político regional para aprofundar a integração latino-americana e caribenha e a soberania em saúde.
Convoca, assim, os povos à mobilização em todos os níveis para passar da resistência à luta por transformações reais.
Brasília, 1º de julho de 2023.
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