A austeridade fiscal, característica da agenda neoliberal, agrava a saúde da população em tempos de recessão por levar a cortes nas políticas sociais, que, ao mesmo tempo em que ajudam a reduzir os níveis de desigualdade, estimulam o crescimento da economia. Esse viés foi defendido pelas pesquisadoras Fabíola Sulpino, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e Isabela Soares Santos, pesquisadora da Fiocruz e diretora executiva do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), durante o seminário Políticas sociais e a austeridade da agenda neoliberal. O evento foi realizado em 16/10/2017, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), em uma parceria do Cebes com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz).
A pesquisadora Isabela Soares Santos contextualizou a discussão conceituando neoliberalismo e austeridade. “O fundamento é o mesmo. Neoliberalismo é fundamentado em três eixos: privatização, que parte do pressuposto da superioridade do livre mercado; individualismo; e liberdade em detrimento da igualdade”, explicou, relacionando o conceito de neoliberalismo com o de austeridade. “Austeridade fiscal, no plano econômico, é a política de ajuste fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado e de suas funções de indutor do crescimento econômico e promotor do bem estar. Os mesmos pressupostos do neoliberalismo. Ou seja, trata-se da mesma corrente ideológica”, comparou.
Embora os níveis de desigualdade entre os mais pobres tenham diminuído nos últimos governos, o país ainda está entre os mais desiguais do mundo, observou Isabela. Uma das razões, segundo a pesquisadora, é o atual sistema tributário. “Somos um país que não tributa os ricos. A alíquota do nosso imposto de renda é 27,5%, enquanto vários outros países tributam mais de 50%. Em relação à herança, nossa alíquota é de 2% a 4%, e há países em que chega a 30%. Não tributamos grandes fortunas, nem lucros e dividendos de pessoa física”, enumerou, destacando que esse sistema contribui para a perpetuação das desigualdades.“Quando se perpetua essa desigualdade, você abre espaço para agendas pelas quais os governos se apoiam na fragilidade da população. São agendas moralistas, conservadoras, de xenofobia, de racismo. Enfrentar e entender a desigualdade é uma pauta que tem que estar muito bem qualificada”, defendeu.
A pesquisadora Fabíola Sulpino elencou em sua apresentação algumas medidas de austeridade que vêm sendo adotadas no Brasil, entre elas o teto de gastos (EC 95), que fixa as despesas primárias [despesas que o governo tem com todas as políticas públicas, exceto as financeiras] pelos próximos 20 anos. “A aplicação mínima em Saúde e Educação passa a ser congelada, em termos reais. Embora haja essa aplicação mínima, Saúde e Educação vão perder porque eram despesas vinculadas, ou seja, conforme a arrecadação aumentava, aumentava também a aplicação de recursos mínimos nas duas áreas”.
Segundo a pesquisadora, com a regra atual torna-se mais difícil alocar recursos para Saúde além do mínimo estabelecido, porque outras áreas das políticas públicas –assistência, cultura, pesquisa, ciência, tecnologia – passam a disputar recursos dentro do teto de gastos. A EC 95 tem, ainda, o problema de desconsiderar um possível cenário de crescimento econômico, observou Fabiola. “Com a EC 95, se a receita crescer, o orçamento da Saúde não cresce obrigatoriamente. Em cenário de crescimento econômico, havendo aumento de arrecadação, as receitas crescem, mas as despesas primárias ficam congeladas! Aumento de receita, mais despesas primárias congeladas, representa aumento desse delta, que, no entanto, não pode ser usado para despesas primárias, porque ficou estabelecido o teto de gastos”, explicou. “Esses recursos serão utilizados em despesas financeiras, reservas monetárias e outras finalidades não relacionadas a benefícios à sociedade”.
Fabíola também criticou outras reformas estruturais em curso. “Há a reforma trabalhista que já foi aprovada. Nela, várias regras foram modificadas, entras elas, o estabelecimento do acordado entre sindicatos e patrões sobre o que está legislado e a jornada intermitente”, lembrou. “A outra reforma em tramitação, a da Previdência, é muito drástica. O tempo de contribuição mínima, por exemplo, foi aumentado para 25 anos. Colegas do Ipea têm calculado e identificado que é muito difícil para alguns grupos, especialmente os mais vulneráveis, comprovarem 25 anos de contribuição”.
Segundo Fabíola, adotar medidas de austeridade em tempos de recessão piora a saúde da população. “Crise econômica, geralmente, provoca perda financeira, o que piora as condições de saúde. Há aumento de casos de suicídio, piora de outros indicadores de saúde, a prevenção se deteriora… Assim, há aumento da demanda por serviços de saúde. Com austeridade, cortam-se recursos do sistema de saúde, das políticas sociais, que dariam um amortecimento naquele momento de crise”, explica. “Se as pessoas não podem contar com um sistema de saúde universal, porque ele está restrito devido aos cortes e não consegue atendê-las, o resultado é que a austeridade acaba agravando os efeitos da crise sobre a situação de saúde das populações”.
Defendendo que o investimento em políticas sociais estimula o crescimento da economia, Fabiola destacou que a austeridade pode ser muito custosa para os países, no que diz respeito tanto ao aspecto econômico, quanto ao aspecto social. “Saúde gera renda. Segundo dados da União Europeia, a saúde contribui com 9% do PIB. No caso do Brasil, a contribuição é de 6,5%, que constitui o que se chama de valor adicionado da Saúde para a economia”. Fabíola também citou o efeito multiplicador do gasto em Saúde. “A equipe do Ipea calculou que a cada real investido em Saúde, gera-se 1,7 real para a economia. Isso vale para benefícios sociais como Bolsa Família, aposentadoria, benefícios de prestação continuada, entre outros. De acordo com estudo desenvolvido pelos pesquisadores britânicos David Stuckler e Sanjay Basu, Saúde e Educação juntas chegam a ter multiplicador maior do que 3”.
O seminário dedicou espaço generoso ao debate, após as duas apresentações. Foram discutidos caminhos para que se leve ao conjunto da população o debate em torno da opção pela austeridade e suas consequências, tal como analisado no texto base de 29 páginas apresentado pelo Cebes para nortear as discussões do evento. “Poucas publicações recentes conseguiram fazer um arco como o desse texto”, considerou Nelson Rodrigues dos Santos, integrante do Conselho Consultivo do Cebes.
Da plateia, o pesquisador Carlos Gadelha, à frente da Coordenação de Ações de Prospecção da Fiocruz, ponderou que a discussão deve partir da constatação de que “existe uma situação pré e pós-golpe” e que a crítica aos governos anteriores é necessária, mas que “sair do Mapa da Fome não é algo trivial”. Gadelha criticou medidas como as mudanças nos direitos trabalhistas, a proposta de reforma na Previdência e o fim das taxas de juros no longo prazo. “O que está no script é [John] Keynes puro, mas o próprio Keynes dizia que o investimento é tão importante que não pode ser deixado na mão do setor privado, que é o que está acontecendo hoje. Acabar com a taxa de lucros no longo prazo é um crime contra o investimento na base produtiva nacional, tanto quanto a pancada na Previdência, nos direitos trabalhistas, no meio ambiente, na visão de segurança, nos movimentos como LGBT, indígena, cultura… Ou seja, é um golpe! Não é só uma guinada na política econômica que o Joaquim Levy trouxe”.
O professor Paulo Henrique Rodrigues, do Departamento de Políticas do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e diretor adjunto do Cebes, reiterou que a austeridade fiscal só piora a situação fiscal. “Desde Keynes se sabe disso”, afirmou, indagando se a opção pelo caminho da austeridade é “mera crença ou há alguma intenção por trás”. Para ele, atual modelo político não mudará, uma vez que o Congresso não votará por uma mudança. “O presidencialismo de coalizão engoliu o PT”, disse. “Ao mesmo tempo, temos uma indignação social que não se converte em mobilização. Foi só em 28 de abril. Tenho cada vez mais convicção de que o caminho não será democrático”, avaliou.
Na mediação do debate, o economista Carlos Ocké-Reis, técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde, observou que a EC 95 não é apenas uma política fiscal cíclica, mas reflexo de um projeto de reforma ultraliberal do Estado brasileiro no qual não cabe a democracia. “A redução dos gastos sociais e dos investimentos públicos significa a ampliação da desigualdade e o rompimento do desenvolvimento inclusivo, que foi uma tentativa ainda frágil dos governos da última década”, afirma, destacando que há alternativas a esse projeto. “Temos uma necessidade central de reverter a correlação de forças no Estado e na sociedade para que possamos ter base social e sustentação política do projeto de que precisamos para superar a recessão” (Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz).
Acesse aqui a apresentação de Fabíola Sulpino.
Acesse aqui o texto-base produzido pelo Cebes para o debate.
Fonte – (Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)