1º de Julho – “A cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu”. Uma frase que se escuta repetidamente, desde que eu me lembro, nos hospitais de todos os países onde trabalhei. Pensando bem, isso é muito estranho. Como é possível definir “sucesso” a morte do paciente? Um paradoxo, sem dúvida nenhuma. Porém, nem sempre esta frase suscita a surpresa e a contrariedade que um esperaria. Como se a vida da pessoa objeto da cura fosse menos importante da cura mesma.
Com Seu Bernardo foi a mesma coisa. Uma pessoa idosa, fumante, magérrima, com um aneurisma dissecante da aorta abdominal que parecia circuito de Fórmula 1. O dia que chegou ao hospital se sentia bem, tanto que fez questão de dirigir o seu Fiat Siena vermelho. Seu Bernardo estava cheio de esperança de acabar com aquela espada apontada na cabeça, como ele falava. Infelizmente, saiu do hospital em carro mortuário, após uma semana de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), sofrendo e se assustando pela morte que percebia estar chegando. Um dia ou outro, a espada ia cair na cabeça de Seu Bernardo, é verdade. Mesmo assim, pelo afeto que eu sentia por ele, decidi tirar satisfação com a direção do hospital.
Falaram-me que foram estritamente aplicados os procedimentos indicados pelos protocolos cirúrgicos. Podia verificar eu mesmo, se o desejasse. C´est tout! (É tudo!) O que aconteceu depois, não foi culpa do hospital. Agradeci e fui embora sem falar nada. Até que entendi o ponto de vista deles: estavam se justificando arguindo a tal eficiência! Ter o melhor resultado possível com determinados recursos, por meio de processos definidos, possivelmente “certificados”!
Mas a pergunta que não quer calar: era realmente necessário aquele procedimento? Foram pesados com cautela os riscos e os benefícios da intervenção? Quais as reais chances de sucesso de uma cirurgia de grande porte num organismo fraco como o de Seu Bernardo? Além de óbvias considerações éticas, que não são objeto desta reflexão, situações como a do Seu Bernardo são frequentes e generalizáveis – e deixam aflorar algumas dúvidas em relação aos parâmetros com os quais avaliamos a eficiência dos serviços de saúde.
O que eu quero dizer é que o hospital que fez a cirurgia do Seu Bernardo pode ser muito eficiente, em termos de capacidade de executar um alto número de procedimentos, utilizando determinados recursos e respeitando processos que garantem a “qualidade”. Só que esta lógica não considera a real e singular oportunidade de realizar o procedimento, não pondera se era realmente a melhor solução para aquele caso. Foi decisão do Seu Bernardo, verdade. Ele assinou o termo de consentimento. Mas o fato de não estar contra a lei, não quer dizer que situações como esta devam ser ignoradas pela métrica oficial da eficiência.
Medir eficiência deve necessariamente analisar as consequências dos procedimentos. Deve verificar e medir os desperdícios causados pelas falhas de utilização dos serviços. No caso hipotético (mas não impossível) de que a cirurgia do Seu Bernardo tivesse sido desnecessária, além de agregar mais uma unidade às alarmantes e crescentes estatísticas sobre óbitos por erros médicos, é evidente que foram jogados fora recursos preciosos: a prótese aórtica, o procedimento cirúrgico, os medicamentos, os exames diagnósticos pré-cirúrgicos, sete dias de internação na UTI e assim por diante. Não conheço a conta exata, mas deve ser uma grana. Talvez, o investimento que acabou com a vida do Seu Bernardo poderia ter sido aproveitado para outra pessoa com maiores chances de sucesso. Isso vale indistintamente paro o Sistema Único de Saúde (SUS) e para as operadoras de planos de saúde.
Estimativas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) e da Secretaria da Saúde dos Estados Unidos indicam que, em média, entre 20% e 25% dos recursos para saúde são desperdiçados. A metade destes problemas deve-se a três grandes categorias de erros dos serviços de saúde: realização de procedimentos desnecessários; falhas na realização de procedimentos necessários; procedimentos errados. O caso do Seu Bernardo, se fosse um erro, estaria no primeiro grupo, o velhaco dos três.
Tudo indica que no Brasil não é diferente. Além de causar iatrogenia e, portanto, ser eticamente gravíssimas, estas falhas retiram do SUS, já anêmico, recursos vitais para a sua sustentabilidade. A outra metade dos desperdícios é causada pelo excesso de burocracia, a corrupção e a gestão ineficiente.
Mais eficiência nos serviços de saúde, onde possível, deve ser objetivo irrenunciável. Contudo, atuar norteados por uma visão da eficiência “mais produtos com os mesmos recursos” pode levar para caminhos perigosos que decidiram os últimos dias do Seu Bernardo. Até hoje me pergunto se, ao não ter feito aquela cirurgia, estaria ainda dirigindo o Fiat Siena vermelho, do qual andava muito orgulhoso.
Renato Tasca, cronista e médico