Sistema ou cobertura universal em saúde? Leia a entrevista com a pesquisadora Eleonor Conill

Qual a diferença entre sistema e cobertura universal em saúde? Qual é o modelo mais adequado para países em desenvolvimento? Que influências tem o programa Obamacare nessa discussão? Para responder a essas perguntas, o Portal da Inovação em Saúde conversou com a coordenadora de pesquisa do Observatório Ibero-Americano de Políticas e Sistemas de Saúde, (OIAPSS), a médica Eleonor Minho Conill, também professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina.

Foi uma conversa franca e muito interessante sobre os rumos da saúde pública na América Latina, na Europa com o impacto da crise financeira, sobre o Programa Obamacare e sobre os obstáculos para o desenvolvimento de sistemas universais de saúde. Ela destaca a maior política de atenção primária do mundo, o Programa Saúde Família do Brasil.

Eleonor Conill propõe um debate transparente com a sociedade brasileira sobre qual o tipo de sistema de saúde o Brasil realmente quer construir e ressalta a diferença entre saúde e doença. Fique à vontade para comentar e compartilhar esta reflexão.

Portal da Inovação – Qual a diferença entre o conceito de Sistema Universal em Saúde e Cobertura Universal em Saúde?

Eleonor Conill – O termo cobertura universal de saúde se refere à prestação de um serviço ou de um conjunto de garantias que podem estar cobertas ou não. Isto reduz a noção de saúde. Mas quando falamos em sistemas universais estamos considerando a saúde como resultado de um conjunto de outros subsistemas essenciais, como o da educação, da habitação, do trabalho, entre outros. Todos esses subsistemas sociais interagem para promover melhoria na qualidade de vida da população e com isso prevenir doenças. Portanto, a noção de sistema universal de serviços de saúde é mais abrangente.

Portal da Inovação – Qual é o melhor modelo para atender as necessidades de saúde da população especialmente de países em desenvolvimento como o Brasil?

Eleonor Conill – Não existe nenhum sistema ideal, nenhum sistema é puro, pensar diferente é uma ilusão. Sistemas de países centrais, aqueles que apresentam melhores formas de garantir os direitos sociais, ainda tem uma parte de serviços em saúde complementada pelo setor privado. Nem sempre o sistema público garante tudo.  Mas há evidência de que os sistemas universais públicos financiados por impostos, organizados a partir de um território com a atenção básica interagindo com os demais níveis de especialização e trabalho em equipe multiprofissional, tem bons resultados em indicadores de saúde, com menor gasto.  São exemplos disso, os sistemas da saúde de Portugal e Espanha, países que adotaram sistemas universais e, têm resultados melhores nos indicadores de saúde que outros com gastos mais elevados. Temos os trabalhos da Barbara Starfield e colaboradores (veja mais – https://apsredes.org/site2013/blog/category/autores) que compararam indicadores nos países da Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), os que eram orientados pela atenção primária apresentaram melhores resultados medidos através de anos potenciais de vida perdidos para todos os tipos de mortalidade e para ambos os sexos.  

Portal da Inovação – Qual o impacto que a reforma do sistema de saúde americano, o programa conhecido como Obamacare, está produzindo em outros países?

Eleonor Conill – O modelo americano do Obamacare expandiu a cobertura de serviços para pessoas que não tinham um seguro privado. Estabeleceu sistema de saúde baseado em uma cobertura universal de seguros privados. É o seguro privado regulado pelo setor público, um modelo que influenciará nesta discussão sobre coberturas universais, pois sugere que este tipo de opção é possível. É um pouco o que a Colômbia fez, mas por questões como a corrupção das operadoras de lá, não deu certo. O problema é que começamos a reforçar a idéia de que saúde é consumir um serviço e basta ter acesso a consultas e exames, sejam esses fornecidos pelo governo ou pelo setor privado. Em geral, neste sentido, os serviços privados são mais rápidos, mas gastam mais e geram excessos desnecessários. Isso pode ser perigoso porque muda a direção, a idéia de que saúde é um bem público, um direito que tem que ser garantido pelo Estado e discutido pela sociedade. Passa a ser mais uma forma de consumo disputada num mercado, o que pode ser muito reducionista. Na verdade a doença já é isso, um grande negócio, regular esse mercado e produzir mais saúde são os grandes desafios para os sistemas universais financiados pelo setor público.

Portal da Inovação – Qual boa prática executada pelo SUS/Brasil que seria modelo para outros países?

Eleonor Conill – O Programa Saúde da Família é a maior política de atenção primária do mundo, mesmo com todos os problemas que ainda persistem o Brasil é o grande protagonismo neste tema.

Portal da Inovação – Qual o impacto da recente crise financeira nos sistemas universais de saúde?

Eleonor Conill – O impacto da crise do capital financeiro que se explicitou na Europa criou sérios problemas sociais para os países com uma situação política e econômica mais frágil dentro da União Européia.  Os sistemas de saúde de Portugal e Espanha, que ainda são excelentes sistemas nacionais, estão sob grande pressão, mesmo que eles não sejam a maior fonte de gastos. Mas sempre que há uma crise financeira o corte de despesas é absorvido pelo setor social. E, esses cortes impactam na qualidade e na legitimação desses sistemas que são referências para nós.

Quando escuto sobre os efeitos no cotidiano assistencial, lembro de que nós vivemos mais de 20 anos em crise. Quando reclamam com razão do aumento no co-pagamento de serviços e dos medicamentos, nos cortes na assistência aos imigrantes ilegais, por exemplo, como a gente já viveu e, de certo modo ainda vive numa penúria muito grande, não nos chocamos tanto.  O principal ponto é o risco do desmonte desses sistemas nacionais de saúde. Quando ocorrem cortes de pessoal, congelamento de salários de médicos e de outros profissionais como foi o caso em Portugal e na Espanha, o sistema vai perdendo qualidade e diminui a aprovação social. É como o nosso SUS que, citando meu amigo Gilson Carvalho do CONASEMS “nasceu uma Mercedes que esqueceram de botar gasolina”. Não tem como andar, ou anda empurrado, lutando para não se desqualificar. Aí o seguro privado vai oferecendo formas complementares e esse mercado tende a crescer.

Portal da Inovação – Na América Latina temos diversos modelos de sistemas de saúde. Colômbia, Chile e Brasil seguem caminhos diferentes, mas quais são os desafios em comum enfrentados pelos países da Região?

Eleonor Conill – Foram três modelos diferentes de organizar a prestação de serviços. No Brasil, se quis organizar a saúde por meio de um sistema. Em 1988, incluímos na Constituição que saúde é um Direito de todos e dever do Estado com determinantes sociais e econômicos e que seria financiada por fontes fiscais. Então, no Brasil fizemos uma reforma publicista e avançamos para uma concepção ampliada da saúde. Mas na verdade a reforma ficou no discurso, pois na prática houve um crescimento exponencial de seguro privado. Em nenhuma outra reforma com construção de sistemas nacionais ocorreu isso. Em muitas capitais a cobertura de planos de saúde é superior a 50% da população e o SUS é suplementar ao seguro privado e não o inverso.

O Chile foi o primeiro país da América Latina a ter o seu serviço nacional da saúde em 1950, inspirado no serviço nacional de saúde inglês. Quando o presidente Salvador Allende foi deposto o Chile estava fazendo um SUS. Quando Pinochet assumiu estabeleceu que as pessoas escolhessem se queriam contribuir para o sistema público ou para o sistema privado, sendo que quem tivesse cobertura num não poderia usar o outro.  Esse foi um modelo liberal explícito.

Nos anos 1990, a Colômbia, sob efeito de uma conjuntura neo- liberal, fez uma reforma um pouco publicista e um pouco privatista, denominada de “pluralismo estruturado”.  A Colômbia aumentou a cobertura através de um sistema regulado pelo governo, mas administrado pela iniciativa privada. O governo passou a pagar um seguro subsidiado, mas quem gerencia e presta os serviços são operadoras de planos de saúde. Este modelo entrou em crise por algumas razões principais, insuficiência das garantias com uma crescente judicialização e corrupção de algumas operadoras, conhecidas como Empresas Promotoras da Saúde.  

Então, na América Latina temos sistemas duais de complexa regulação. Há uma mistura público e privada com múltiplos arranjos no financiamento, na forma de prestar serviço e no seu uso.  Temos como desafio comum organizar essa complexidade, definir qual será a tendência principal do sistema de saúde.

A sociedade deve ser estimulada a pensar que ter saúde é diferente de tratar a doença. Quanto mais mantivermos a saúde melhor será para cada indivíduo e para todos. Atualmente, a doença é um grande negócio, um setor econômico extremamente forte, tanto a produção de equipamentos médico-hospitalares, quanto a produção farmacêutica e a intermediação desse sistema, com operadoras de seguros, consultores, tecnologias de informação, tudo isso é um grande negócio. Ao construir um sistema que estimule as pessoas a terem menos doença haverá um menor consumo e menores lucros nesse potente setor econômico, então os interesses e obstáculos são enormes.

Portal da Inovação – Quais são os principais obstáculos para um sistema universal de saúde?

Eleonor Conill – Nas manifestações ocorridas no ano passado, quando as pessoas foram para as ruas pedir políticas sociais de qualidade, perdemos uma grande oportunidade. Pela primeira vez a classe média brasileira foi às ruas pedir políticas públicas, de habitação, de saúde, de mobilidade urbana. Não pediram planos de saúde e sim um SUS padrão Fifa. Ali foi uma oportunidade perdida para costurar um pacto social melhor.

Vejo como obstáculo o sub-financiamento público, mas principalmente a necessidade de um amplo debate com a sociedade brasileira sobre o tipo de sistema de saúde que ela quer. Hoje em dia o SUS oferece uma cobertura integral, mas as pessoas não se sentem seguras.  Vivem numa multiplicidade de arranjos, de ‘jeitinhos”.   Não concordo com o programa Mais Médicos enquanto principal resposta as demandas sociais feitas em junho do ano passado. Precisamos de mais médicos, mas também  de carreiras adequadas, de profissionais mais bem treinados, de despolitizar a gestão, de melhores equipamentos sócio-sanitários,  mas isso eu chamo de ingredientes.

Antes temos que decidir qual o tipo de sistema de saúde que queremos construir. O melhor caminho é discutir as questões sobre a organização da prestação dos serviços com mais transparência, não desviar o foco de questões de fundo, como foi feito.

As pessoas querem ter respostas do sistema quando precisam, querem ter segurança quando são atendidas. Uma grande e séria discussão em torno disso seria a grande inovação no Brasil. Eu acho que esses sistemas públicos – Portugal e Espanha – inovaram justamente por mostrar que um serviço nacional público orientado pela atenção primária pode ter bons resultados com grande  aprovação social.

Por Vanessa Borges, para o Portal da Inovação em Saúde

 

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