Aquisição de frutas, legumes e verduras diretamente da agricultura familiar por órgãos públicos – um modelo viável.

Autores do relato:

Andrea Bruginski drekabru@gmail.com


Contextualização

As aquisições de frutas, legumes e verduras diretamente da agricultura familiar para atendimento às mais de 2 mil escolas da rede pública estadual de ensino abrange todos os 399 municípios do Paraná, com as suas mais variadas características de clima, de produção, de hábitos e tradições alimentares. As aquisições priorizam as compras dos agricultores familiares produtores locais, assentamentos da reforma agrária, povos tradicionais, e alimentos orgânicos e de base agroecológica.

Justificativa

A alimentação escolar na rede estadual de ensino até 2010 era constituída quase que integralmente por alimentos industrializados, dada a complexidade logística para distribuir alimentos perecíveis para aproximadamente 1 milhão de alunos, matriculados em aproximadamente 2.300 escolas dos 399 munícipios, além dos desafios da logística aquaviária para atender escolas localizadas nas ilhas, e o acesso às escolas indígenas e do campo por vias não pavimentadas. Contudo, era urgente e necessário buscar formas que permitissem o contínuo abastecimento das escolas com alimentos in natura, principalmente frutas, legumes e verduras. Com o advento da Lei Federal nº 11.947/2009, que tornou obrigatória a destinação de no mínimo 30% dos recursos transferidos pela união na aquisição de alimentos diretamente pela agricultura familiar, foi necessário implantar um modelo de compras que aproximasse os gestores dos produtores, bem como viabilizasse a compra e fornecimento continuo de alimentos perecíveis a mais de 2.300 pontos de entrega, com diferentes perfis alimentares, demandas de consumo, e variadas tradições produtivas, e ainda associar/respeitar normativas legais relacionadas às compras públicas. A partir desta necessidade foi necessário estruturar um modelo de aquisição para atender as normativas do Programa Nacional de Alimentação Escolar, da legislação de licitações, respeitando características de produção e cardápios escolares, que é o modelo descrito no presente relato.

Objetivo

Definir um modelo de aquisições que permita realizar as compras de frutas e verduras para atendimento às quase 2.250 escolas da rede pública estadual de ensino, com frequência semanal, diretamente dos agricultores familiares de cada região. O público chave da experiência são as mais de 20 mil famílias de agricultores familiares.

Metodologia

A primeira ação para implantar as aquisições diretamente da agricultura familiar foi o mapeamento das variedades e alimentos produzidos em cada região do estado. Como era de se esperar, identificou-se que a produção difere muito de região para região, decorrente da dimensão territorial do estado, vocação agrícola de cada região e, principalmente, em decorrência da variação de temperaturas – as máximas chegam a atingir 40 °C no verão em algumas regiões, e as mínimas chegam a atingir temperaturas inferiores a zero grau (WONS, 1994). A partir de tais características, idealizou-se um modelo flexível de compras, em que não se comprariam “itens”, e sim grupos de alimentos. Desta forma foi realizado um procedimento de Chamada Pública para seleção das entidades representativos dos agricultores familiares, por meio de dispensa de licitação, tendo os preços estabelecidos previamente, para execução ao longo de um ano. Neste modelo a seleção dos fornecedores não se deu por disputa de preço e sim de acordo com critérios previamente definidos pelas normativas do Programa de Alimentação Escolar, descritos a seguir: 1º A proximidade do local de produção em relação a localização das escolas, categorizando em fornecedores do município, da região imediata, intermediária e do estado. As regiões são definidas pelo IBGE. 2º Agricultores de assentamentos da reforma agrária, indígenas, comunidades quilombolas e faxinalenses. 3º Produtores de alimentos orgânicos e agroecológicos. 5º Participação de mulheres. Para cada uma das condições supracitadas foram definidas pontuações, de forma a facilitar a hierarquização dos ganhadores de cada grupo e local. Os projetos de venda foram gerados por meio de um sistema eletrônico de gestão utilizado pela gestão da alimentação escolar, no qual as associações e cooperativas da agricultura familiar se cadastram, registram os grupos e locais que tem interesse em fornecer, e o próprio sistema calcula as quantidades de alimentos por grupo e escola, tendo como base o número de refeições e a frequência de oferta. No caso dos grupos das frutas e verduras o fornecimento é semanal. A habilitação envolveu apresentação da documentação contábil, fiscal, jurídica e técnica. A documentação técnica envolve a comprovação da condição entidade representativa da agricultura familiar por meio da Declaração de Aptidão ao PRONAF – DAP Jurídica, e licença sanitária no caso da oferta de abóbora e mandioca que foram adquiridas descascadas, picadas e embaladas. Concluídas a classificação e habilitação, as associações e cooperativas da agricultura familiar foram contratadas para fornecimento anual dos produtos. Os preços foram pesquisados pela Secretaria de Estado da Agricultura e Pecuária, que realizou quatro tomadas de preços nas feiras do produtor nas quatro estações do ano, e ao final realizou trabalho estatístico para definir o preço anual de cada item.

Atores envolvidos (institucionais e/ou coletivos)

Nutricionistas da gestão do Programa de Alimentação Escolar estadual, agricultores familiares, entidades representativas dos agricultores familiares (associações e cooperativas detentoras de DAP Juridica), Conselho Estadual de Alimentação Escolar.

Estratégias

A principal estratégia envolvida foi a categorização dos alimentos em quatro grupos: frutas, hortaliças, legumes e temperos, de forma a realizar a contratação por meio de grupos, e não itens. Ao realizar a contratação de grupos de alimentos, os agricultores têm a opção de entregar qualquer um dos itens que compõem o grupo, no preço estabelecido para cada alimento, de acordo com os itens que estão produzindo no momento, em diferentes regiões do estado. Esta lógica de contratação viabiliza o contínuo cumprimento dos contratos pelos agricultores, assim como garante a oferta ininterrupta de alimentos frescos aos alunos. Os agricultores dão vazão à produção e o abastecimento das escolas é assegurado. Na mesma semana que as escolas de um município estão recebendo laranjas, o do lado pode estar recebendo ponkã, e assim sucessivamente. Não é a gestão que pré-define os itens a serem entregues por semana, e sim a disponibilidade produtiva de cada região. Esta estratégia também permite respeitar as variações climáticas que acometem continuamente a agricultura – se a época de produção do morango costuma ser em outubro, por exemplo, mas a natureza “se adianta”, neste modelo o agricultor pode entregar o morango em setembro, visto que o contrato define somente as quantidades de cada grupo a serem entregues por escola, mas não especificamente quais itens em que período, o que garante que o agricultor não perca sua produção de morango, e os alunos não deixem de ter o produto em seu cardápio . Nesse modelo de compra, a elaboração “final” dos cardápios é realizada após a entrega de produtos, e não antes, o que realmente parece contrariar a lógica do planejamento dos cardápios. Contudo, há o planejamento antecipado no sentido das quantidades e frequências com que cada grupo será adquirido. Só não se especifica o alimento, de forma que o cardápio “final” só é estabelecido à medida que as escolas recebem os alimentos. Note-se que os gêneros alimentícios entregues são correlatos nutricionalmente, visto que foram segmentados por tipo de item. A mobilização dos agricultores e entidades representativas ocorreu por meio de reuniões regionais, em que se apresentou a proposta de edital, a categorização dos grupos, a documentação necessária, bem como foram gravados tutorais de acesso ao sistema eletrônico, e ao longo dos procedimentos a equipe atendia a cada um individualmente via telefone, e-mail ou pessoalmente.

Resultados alcançados

Em 2021 foram contratadas 21 diferentes frutas, 13 tipos de hortaliças, 16 tipos de legumes e tubérculos e 6 tipos de temperos (alho, cheiro verde e afins). Entre estes alimentos, alguns integram espécies nativas da sociobiodiversidade brasileira: abacaxi, amora preta, goiaba, jabuticaba, juçara (polpa de fruta), mandioca, maracujá e pinhão. As quantidades e valores contratados de cada grupo em 2021 foram os seguintes: Frutas: 3.719.553 quilos, dos quais 1.089.011 são orgânicos (29%); Hortaliças: 1.171.664 quilos, dos quais 501.865 são orgânicos (43%); Legumes e tubérculos: 2.638.619 quilos, dos quais 1.029.600 são orgânicos (39%); Temperos: 581.202 quilos, dos quais 224.290 são orgânicos (39%); No total foram contratados 8.111.038 de quilos, representando um investimento anual de R$ 53.312.948,00. Todo esse recurso foi distribuído em todos os 399 municípios do estado, levando desenvolvimento econômico e social aos agricultores e aos municípios como um todo, bem como representou em torno de 400 gramas de frutas e verduras consumidas semanalmente pelos alunos da rede pública estadual de ensino.

Considerações finais

As contratações garantiram aos alunos acesso a alimentos in natura, produzidos localmente, respeitando seus hábitos alimentares e promovendo sua saúde, por meio do consumo de aproximadamente 400 gramas de frutas e verduras semanalmente, das quais em torno de 35% são orgânicas e de base agroecológica. Também foi garantido a mais de 25 mil agricultores envolvidos no fornecimento o escoamento de sua produção, renda mensal ao longo do ano letivo, incentivo ao desenvolvimento sustentável e sócio econômico dos 399 municípios participantes, pagamento de preços justos aos agricultores, sem envolvimento de intermediários, levando dignidade a povo campesino, bem como permitiu o planejamento de plantio aos agricultores familiares planejem a produção anual, visto que têm garantia de escoamento de sua produção. O processo de compra por meio de grupos e diretamente da agricultura familiar é uma estratégia de sucesso, com desdobramentos nutricionais, resgate de tradições alimentares, sociais, econômicas e, principalmente, de segurança alimentar e nutricional. Trata-se de um modelo facilmente replicável, seja na instância pública ou privada, dado que envolve realizar contratações que flexibilizam os produtos a serem fornecidos dentro de grupos pré estabelecidos. O investimento na agricultura familiar gera desenvolvimento econômico e social, bem como sustentabilidade ambiental e consumo de alimentos de verdade, produzidos localmente. As maiores lições aprendidas foram: a) o respeito a produção local/regional– nem tudo se produz o tempo todo pela agricultura familiar; b) a compreensão do que é qualidade do alimento produzido pela agricultura familiar – os alimentos não têm o mesmo tamanho, formato como ocorre nas grandes produções onde são realizadas pré classificações, mas sim tem muita qualidade; c) o respeito a sazonalidade de onde se reside – há o tempo certo para produzir cada alimento, d) frutas orgânicas muitas vezes são menores mas não menos saborosas (pelo contrário). Todos esses aprendizados foram compartilhados e aprendidos juntos com a comunidade escolar, com os agricultores familiares, com os gestores escolares. E a maior lição de todas é que é possível flexibilizar modelos de compra, mesmo na esfera pública, dentro da legalidade.