O Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária (MISMEC), Projeto 4 Varas: Terapia Comunitária Integrativa, é realizado dentro da comunidade Pirambu, em frente ao mar de Fortaleza, no Ceará, atuando em parceria com a prefeitura local. Na década de 1980, o advogado Airton Barreto, ativista dos direitos humanos, resolveu prestar os seus serviços para uma comunidade que sofria diariamente com a violência e que não via saída para os problemas. Foi assim que tudo começou, com atendimento embaixo de um cajueiro, o advogado percebeu que a maioria dos casos não eram jurídicos, mas sim, de sofrimento humano. Foi quando, junto ao irmão, o médico psiquiatra Adalberto Barreto, professor na Universidade Federal do Ceará, começaram a trabalhar juntos no cuidado do sofrimento humano daquela comunidade. No projeto, encontramos as origens da terapia comunitária integrativa, uma inovação genuinamente brasileira, que faz parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. A equipe do laboratório visitou o projeto para produção de vídeo documentário.
“Quando eu cheguei aqui, o que eu percebi era que havia um sofrimento coletivo, marcado por sentimentos de perdas, crise de identidade, violência, depressão, muita ansiedade. E escutando, eu me dei conta que não se tratava de patologia, que precisava de um psicotrópico, e sim de sofrimento, de dor da alma, que precisava ser escutado. Foi a partir daí que veio a necessidade de ver que nós tínhamos que criar um outro modelo, porque o modelo que nós temos é o modelo vertical, a comunidade que tem problemas, as soluções vêm das instituições e dos especialistas, o que gera dependência e torna-se muito caro. Então, veio a ideia de criar espaços de acolhimento da dor da alma, do sofrimento, que não pode ser medicalizada e muito menos psiquiatrizada. Assim, criamos o Projeto 4 Varas”, explicou Adalberto Barreto, médico psiquiatra e criador da Terapia Comunitária Integrativa.
O nome 4 Varas é inspirado na lenda do pai que mostra aos filhos que, juntas, as varas ficam mais fortes. Ao longo de 35 anos, a metodologia se consolidou em todos os estados brasileiros e foi implantada em 27 países. Mensalmente, são realizados mais de seis mil atendimentos pelo SUS. A área destinada ao projeto Quatro Varas fica junto a uma unidade de Atenção Primária à Saúde. O espaço também abriga um horto e uma farmácia viva, que produz fitoterápicos para a comunidade. A obra do médico Adalberto Barreto, com a valorização dos potenciais da comunidade, está disponível em dezenas de publicações, lançadas no Brasil e no exterior.
O grande objetivo é valorizar as experiências e as competências adquiridas ao longo da vida. No mesmo espaço, convivem pessoas com diferentes culturas, integrando formas de cuidado com os recursos disponíveis. O projeto incentiva as atividades em grupo, para reunir a comunidade. Ao chegar no local, cada usuário coloca o seu nome na lista para fazer massoterapia, auriculoterapia, reflexologia, ventosaterapia, mas antes da consulta individual, acontece um acolhimento, com música, e as regras são estabelecidas: não julgar, não criticar e ter escuta ativa. Em seguida, é escolhido um tema e a pessoa fala sobre, uma contextualização, todos fazem perguntas. Depois que esta pessoa fala do seu sofrimento, é visto o que há de universal naquela particularidade. Quem já viveu algo parecido, e o que fez para superar? Com isso, as soluções saem do próprio grupo. A metodologia da terapia comunitária integrativa valoriza as competências das pessoas. A mesma comunidade que tem problemas, também tem suas próprias soluções. As dinâmicas de grupo atuam no resgate da autoestima e no alívio dos sofrimentos, usando conhecimentos tradicionais, como escalda pés e ervas medicinais.
Os espaços de atendimentos coletivos e individuais agregam técnicas de imposição de mãos, massagens, banho de ervas e outras terapias integrativas e complementares. A arquitetura da sede do projeto reflete a circularidade das relações. As construções, inspiradas em ocas indígenas, são redondas, favorecendo a integração e os vínculos.
“A terapia comunitária é um espaço de construção de vínculos, de teias afetivas, teias onde se articulam o saber tradicional com o saber acadêmico, a universidade com a comunidade, as pessoas com as instituições. A cultura é o arcabouço de uma identidade. Então, no momento da construção de vínculos, são os valores que nos unem. É a nossa cultura”, explicou Adalberto Barreto.
Gabriel Alves, estudante e usuário do SUS deu o seu depoimento: “Em grupo, você pode se identificar com outras pessoas que têm os mesmos problemas que você, você também pode aprender os problemas desta pessoa. Você pode ser ajudado e também ajudar”.
Entre os terapeutas, há descendentes indígenas, que utilizam conhecimentos ancestrais, como a dona Maria Zilma de Oliveira, por exemplo, terapeuta do MISMEC 4 Varas: “No meu trabalho, eu sou rezadeira, sou terapeuta. Quando a pessoa me pede para eu rezar, eu vejo se a pessoa está precisando das orações. Eu passo um raminho, e eu sei, eu vejo. Eu sou uma serva de Deus. Pelo consentimento que Deus me deu, eu tenho o dom de ser curandeira”.
“Eu sou médico, psiquiatra, professor da faculdade, tenho um saber que me permite prescrever os remédios controlados. Mas, quem é descendente dos africanos, tem o saber dos pretos velhos. Quem é descendente indígena, tem a sabedoria dos xamãs e dos pajés, com seus chás. Quem tem 70 anos, tem um saber produzido por 70 anos. E o que nós vamos fazer na roda de terapia? Partilhar este saber, fruto da experiência de vida. Onde nós partilhamos o que vivemos, e não o que lemos ou sabemos, teoricamente, esta é uma das bases da estrutura da terapia comunitária”, considerou Adalberto Barreto, sobre os conhecimentos ancestrais.
Alguns cuidadores e terapeutas que antes eram pacientes, depois passaram a atuar no projeto. “Eu cheguei aqui, no final de 2018, com crises de ansiedade, com encaminhamento, e nessas crises de ansiedade eu só achava que ia morrer. Aqui, eu fui cuidado, acolhido, e diante de toda a situação que eu vivia e passei, depois do cuidado, eu me senti reintegrado na sociedade. E, aos pouquinhos, foram me convidando para vir trabalhar aqui. Quando hoje eu olho para as pessoas que chegam aqui, com as suas ansiedades, com as suas depressões e não conseguem nomear, e hoje a gente consegue dar sentido, e depois elas dizem, nossa, eu também fui cuidado nesta casa. E as pessoas saem, passam um tempo. Outras continuam. Ou então, aquelas que passaram um tempo, acabam voltando. E elas acabam também fortalecendo as outras”, contou Igor Premal, terapeuta do MISMEC 4 Varas.
Ana Beatriz costa Lima, psicóloga e também terapeuta do projeto explicou: “Quando as pessoas vêm para cá, que fazem as dinâmicas, e principalmente, no momento da partilha, eles descobrem que aquilo que eu acredito que era um problema muito grande, e que só eu que vivia isso, você percebe que uma outra pessoa, muitas vezes ao seu lado, passa por alguma coisa parecida, ou passa por coisas até piores. Então, isso tudo gera uma rede de proteção”.
Além do projeto na capital, os irmãos também contam com uma pousada, chamada Ocas do Índio, localizada em Morro Branco/CE, onde são realizadas as formações dos terapeutas, que vêm de diferentes lugares do Brasil e do exterior. O aprendizado é focado nas vivências e na valorização da cultura, integrando conhecimento científico e conhecimento popular.
“Parece que o mundo acadêmico quer a morte das nossas raízes. Para ser cientista, não posso acreditar em mais nada da cultura. E eu fiz um pacto comigo mesmo, de que eu gostaria muito de superar esse desafio, procurando trabalhar com a ciência e a cultura. Tudo que eu fiz, foi nesta perspectiva. É um pé na cultura e outro na ciência. Eu acho que nada é mais terapêutico que o amor. Eu acho que tem de inovador a gente criar o que nós chamamos de modelo solidário. Onde cada pessoa é parte do problema e parte da solução. Se tivesse uma frase que traduzisse um pouco do nosso projeto, talvez seria pessoas que cuidam de pessoas”, finalizou Adalberto Barreto.