A última mesa do Seminário Internacional do Direito à Saúde, realizado nesta terça-feira (23/11), destacou iniciativas de participação social para o enfrentamento da pandemia nas populações em situação de vulnerabilidade. Promovido pela Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil (OPAS/OMS) e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), o encontro reuniu conselheiros de saúde, gestores públicos, pesquisadores e representantes da sociedade civil, com a apresentação de experiências nacionais e de países da América Latina e Espanha.
A pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, Sônia Fleury, refletiu sobre a necessidade de repensar a atuação do Estado perante o agravamento das desigualdades sociais e econômicas no país, visando a proteção das populações em situação de vulnerabilidades, que segundo pesquisas, foram as mais atingidas pela Covid-19. “Temos que enfrentar a questão do capitalismo, que está numa crise profunda, mas não aparecem alternativas seguras de para onde vamos caminhar. É possível você ter um capitalismo que destrói o meio ambiente, onde pessoas morrem de fome comendo ossos e os bancos com super lucros, mercado financeiro com super lucro e, ao mesmo tempo, uma desindustrialização que nem máscara conseguimos produzir o suficiente”, questionou. “Ou colocamos novamente a questão da soberania ou não teremos o combate às desigualdades”, defendeu a pesquisadora.
Segundo Fleury, em 1980, o Brasil produzia 55% dos insumos para o sistema de saúde. Em 2020, produziu apenas 5% dos insumos. “A desindustrialização impede a efetivação do sistema de saúde, deixando-o completamente subordinado a uma produção internacional”, explicou a cientista política. Sobre os sistemas nacionais e internacionais de saúde, Fleury comentou que já vinham sofrendo com políticas de austeridade, com a redução do papel do Estado, dos gastos sociais em saúde, da promoção da mercantilização do setor saúde impondo barreiras de acesso aos serviços de saúde. “É um processo de financeirização da economia de tal maneira que os estados que antes eram arrecadadores de impostos, passaram a ser os grandes devedores”, considerou a pesquisadora, que também criticou os processos de privatização dos serviços de saúde. “Arranjos do setor privado tentam utilizar os recursos públicos como opção de crescimento de mercado”, considerou Fleury.
A pesquisadora destacou como exemplo de participação social na Covid-19, iniciativas das populações em situação de vulnerabilidade social das periferias que se organizaram praticamente sozinhas, para enfrentar a pandemia. Saiba mais em https://wikifavelas.com.br/ “Acho que o pós-pandemia não pode ser a volta ao velho normal, pois foi isso que nos levou ao aumento das desigualdades e vulnerabilidades das populações periféricas, negras, mais pobres, indígenas e ainda a incapacidade do SUS de dar conta e de garantir o direito à saúde dessas populações. É preciso refletir sobre a ideia da cobertura universal, incapaz de enfrentar a situação de saúde, porque ela preserva a mercantilização da saúde, não tem uma autoridade central. O que já era um equívoco de antes, ficou ainda mais claro na pandemia”, pontuou Fleury.
Em seguida, a experiência do Maranhão foi apresentada por Alan Patrício, chefe da assessoria especial do gabinete do secretário de estado de Saúde do Maranhão, que pontuou momentos dramáticos no enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil. “Houve uma dificuldade de diálogo entre o Estado e federação, no que diz respeito sobre como fazer o enfrentamento da pandemia, se com isolamento social, imposição de medidas sanitárias, regras sanitárias, etc. Foi preciso que o STF interviesse em relação a uma medida provisória instalada pelo Governo Federal, e o Supremo reconheceu a competência dos Estados, Municípios e da União nas decisões de combate à pandemia, devolvendo a autonomia aos gestores estaduais e municipais”.
Patrício destacou que uma estratégia eficaz de enfrentamento à pandemia, que considerasse as desigualdades sociais existentes no contexto brasileiro, exigia, portanto, políticas públicas que abrangessem desde a assistência socioeconômica à atenção à saúde da população. “No Maranhão, o estado trabalhou no sentido de informar à população, realizou fiscalizações, distribuiu máscaras, ampliou os leitos da rede hospitalar, contratou equipe técnica para vacinação, realizou programas de doação de cestas básicas e vale gás, o estado apresentou mais de 10 modalidades de auxílio para auxiliar na questão econômica para somar ao auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional”, exemplificou.
Sobre os desafios futuros em relação à pandemia, Alan Patrício destacou como desafio os fatores econômicos, como os elevados índices de inflação e desemprego no país, e para a saúde coletiva, a demanda reprimida de procedimentos eletivos no SUS e a necessidade de tratamento das sequelas da doença, além de questões sociais, como o luto nacional pelos mais de 600 mil brasileiros mortos pelo vírus. “Também existe a necessidade de esforços que combinem programas de incentivo econômico e distribuição de renda com o fortalecimento de ações de saúde, sobretudo na Atenção Primária, tanto a prevenção de doenças quanto a promoção do bem-estar das pessoas”, finalizou Patrício.
O terceiro palestrante da mesa, Giordano Magri, pesquisador de direitos humanos e políticas públicas, falou sobre as “Ações para população em situação de rua em São Paulo”: “Quando a gente pensa em população em situação de rua, principalmente no começo de 2020, início de pandemia, se divulgou muito o movimento da importância do isolamento social, e para a população em situação de rua é um desafio por si só, como ficar em casa em situação de rua?”, refletiu. “A situação dessas populações já eram precárias, com a pandemia só piorou, houve o aumento de problemas que já existiam”, enfatizou.
O palestrante relatou medidas adotadas pelo governo paulista para minimizar o impacto da pandemia, mas também pontuou situações violentas da polícia, ressaltando a dualidade das políticas, que por um lado se dedica a melhorar a qualidade de vida dessa população, e por outro lado agrava a violência. “Acho que essa dimensão do olhar integral vai sendo construída a partir de muitas perspectivas e premissas, não dá para pensar em uma articulação com a população de rua sem vincular a questão territorial. Todos os contextos importam e é por isso que é importante o olhar integral e para o território”, refletiu. Magri defendeu, ainda, a articulação da rede intersetorial do território e que o profissional da saúde possa garantir um atendimento mais efetivo, integral, e dar autonomia às pessoas em situação de rua, para que elas possam e tenham condições de decidir sobre seus próprios destinos.
Maria Eduarda Spencer, médica do Distrito Sanitário Especial Indígena Alagoas/Sergipe, atuante no Polo Base Xucuru Kariri e Integrante do Grupo de Trabalho Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, contextualizou os dados dos povos indígenas no Brasil, de aproximadamente 817.963 indígenas, em áreas rurais e urbanas, com 305 etnias diferentes e 274 línguas. Em sua apresentação “Ações para a população indígena”, destacou as estratégias de enfrentamento à Covid-19 para os povos indígenas em Pernambuco.
“A gente percebe que a concepção deles de cura depende dos rituais, da interculturalidade, e muitos precisavam mesmo dos rituais para enfrentar a pandemia, então alguns não pararam. Há muitos anos, os indígenas trazem a ideia da pandemia e os riscos que poderiam vir. Foi muito duro para gente ter que trabalhar tanto com os cuidados gerais, mas também com a realidade local. Além disso, outros surtos de outros problemas de saúde que muitas vezes são evitáveis, tivemos que lidar com o colapso do SUS, problemas de distribuição de água, demandas de outras especialidades e tivemos que desenvolver atuações de alta e média complexidade in loco mesmo”, explicou Maria Eduarda Spencer.
A médica também relatou que com os cortes nos recursos da saúde indígena e o aumento dos custos do combustível, os indígenas deixaram de fazer exames complementares em outras áreas da saúde. “Temos ainda restrições, tanto para levar a equipe quanto para trazer os indígenas. A questão da saúde mental acabou piorando, tivemos um aumento das tentativas de suicídio nos territórios indígenas e, inclusive, desigualdade de suporte dos profissionais especialistas em saúde mental. Em territórios maiores até temos psicólogos, mas temos a ausência do NASF em vários outros municípios, e em áreas de menor população indígena temos uma dificuldade de suporte aos profissionais da saúde mental”, elencou.
Veja o seminário completo no youtube do CNS e no Portal da Inovação na Gestão do SUS.
Confira outras matérias sobre o seminário: https://apsredes.org/seminario-internacional-o-protagonismo-da-participacao-social-no-sus-faz-a-diferenca-contra-a-covid-19-diz-maria-almiron-da-opas/