“Criançar” e Adolescer no Brasil são processos, cada dia mais, à beira da extinção. Diante disso, as esferas governamentais, sociais e educacionais passaram a tratar dessa temática com certa urgência, e promover, em diversos espaços de circulação dessa população, a sistematização de uma série de pensamentos críticos visando elaborar conjuntos de ações com o objetivo de garantir, ampliar e fomentar os direitos das crianças e adolescentes, além de buscar por estratégias para afiançar seu empoderamento.
No que diz respeito aos cuidados ofertados no campo da Saúde, a ação prioriza a primeira infância (>3 anos). A posteriori e gradativamente, acompanha-se a relação das crianças com os equipamentos de saúde, apenas procurados quando da instalação de algum quadro patológico.
Apropriando-se da discussão no campo da Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica Brasileira, o cuidado à criança e ao adolescente tem sido um dos maiores desafios quando se pensa na importância determinante dos primeiros períodos da vida para a formação psíquica desses seres em desenvolvimento.
Por si só, passar pela infância, adolescência e juventude até chegar à vida adulta traz consigo diferentes experiências que, por vezes, podem culminar em diversos quadros do sofrimento psíquico, incapacitantes para a consecução das atividades da vida diária.
Com a aprovação da Lei Federal no 10.216, de 6 de Abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, foram criados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em três diferentes modalidades: Adulto; Álcool e Drogas; e Infanto-Juvenil.
Os CAPS para Infância e Juventude (CAPSij) ganharam espaço de destaque no cenário nacional por se caracterizarem como serviços de portas abertas e atenção diária pelo Sistema Único de Saúde (SUS), destinados ao atendimento de crianças e adolescentes, suas famílias, em sofrimento psíquico grave, persistente, e em uso de substâncias psicoativas.
No CAPSij Capela do Socorro, há mais de cinco anos a equipe vem acumulando experiências, buscando prestar atenção integral diária a esses usuários. Trata-se de uma iniciativa desenvolvida no ano de 2014 e desde então sustentada como dispositivo de ação, denominada AcampaDentro.
A ideia da atividade, realizada no espaço do CAPSij no período noturno, surgiu da própria solicitação dos adolescentes nos atendimentos terapêuticos, grupos e assembleias. Por consistir de um serviço de modalidade II, seu funcionamento cotidiano previsto é de segunda a sexta-feira, das 7 às 19h. No caso do AcampaDentro, a lógica de funcionamento noturno, especialmente na noite de sexta para o sábado, atendeu ao desejo dos adolescentes de subverter o modelo estabelecido das relações com os profissionais do serviço.
O CAPSij em questão está localizado no extremo da Zona Sul da cidade de São Paulo, em uma região marcada pela vulnerabilidade econômica e social e, portanto, pela maior dificuldade de acesso ao lazer e à cultura. São motivos suficientes para compreender o desejo e a solicitação dos adolescentes de realizar uma atividade tão singular, caracterizada por vontades e experiências ligadas à evolução da adolescência e juventude.
Ao longo do ano de 2014, foram realizados dois encontros, cada um com a participação de dez adolescentes. Esses encontros aconteceram com datas pré-estabelecidas, entre as 9 e as 19 horas. Todo o processo foi acordado previamente, pelos profissionais, adolescentes e pais, possibilitando o protagonismo de cada participante, uma das diretrizes do SUS: Participação Social.
Na primeira edição do AcampaDentro, durante a apresentação dos usuários, foi possível perceber que, em sua maioria, eram adolescentes com hipótese diagnóstica de deficiência intelectual e autismo, e que aquela seria a primeira oportunidade de dormirem fora de casa, distantes de seus pais, familiares ou cuidadores. E assim aconteceu. Naquele dia, foram realizadas diversas atividades durante a noite, como jogos eletrônicos e manuais, a dinâmica Caça ao Tesouro, alimentação comunitária preparada na hora, por todos, contos de diversas histórias em volta da fogueira, sessão de cinema; e tudo isso ao som de muita música, ingrediente principal da ação.
A segunda edição decorreu do sucesso da primeira. Foi a oportunidade de atuar com os adolescentes maiores, cujo histórico de vida era menos danoso no que se refere à socialização e contato com seus pares. Dessa vez, a equipe, além de estar junto a eles e disponibilizar-lhes espaços, teve a oportunidade de compartilhar fragmentos de si e de suas histórias de vida. Todas as atividades propostas foram construídas coletivamente, com a participação dos próprios adolescentes. O encontro foi regado de muita música e filmes. Os adolescentes transformaram o espaço físico do CAPS em uma verdadeira danceteria, da iluminação e ornamentação às músicas tocadas.
Principais objetivos do AcampaDentro
– Promover um maior protagonismo juvenil e a ampliação de repertório de vida de cada adolescente que experimentou aquele momento.
– Incrementar novas experiências, encontros e possibilidades de estar junto.
– Apresentar novas possibilidades de estar diante da vida e de seu cotidiano.
– Fomentar, no território e equipamentos da rede, a discussão sobre a necessidade de “despatologização da juventude” e dos profissionais que italia-meds a essa população.
Relato da experiência
A experiência aconteceu nos meses de abril e outubro de 2014 e envolveu a equipe multiprofissional do CAPSij Capela do Socorro, adolescentes, familiares e cuidadores atendidos no serviço, equipe de apoio, a Supervisão Técnica de Saúde da Capela do Socorro e a Coordenadoria Regional de Saúde Sul.
Descrição das técnicas, ferramentas, métodos ou processos de trabalho utilizados
Todo o processo de construção do AcampaDentro se deu na forma relatada, conjuntamente, entre a equipe, adolescentes e cuidadores. Nesse modelo de intervenção, a técnica estabelecida foi a da parceria, dos acordos coletivos e do incentivo ao protagonismo dos adolescentes. Paralelo a isso, encontros sistemáticos com discussões sobre tal atividade constituíram a ferramenta principal para a efetivação da ação.
A equipe do CAPSij também precisou se organizar quanto à escala de horários. De acordo com a disponibilidade de cada profissional, uma parte da equipe manteve as atividades regulares do serviço no período diurno e os demais profissionais se prontificaram a estar com os adolescentes durante todo o período noturno. Foi necessário o contato e pedido de autorização da ação junto à Supervisão Técnica de Saúde e à Coordenadoria Regional de Saúde Sul.
Facilidades e dificuldades
Entre as facilidades da experiência, foi possível contar com as escolhas, vontade e desejos de cada sujeito envolvido, ingrediente essencial do trabalho terapêutico. Se não há desejo, vontade ou escolhas, fica inviável a efetivação de qualquer atividade diferenciada.
As dificuldades encontradas também podem ser interpretadas como potencialidades, a exigir dos atores envolvidos uma entrega maior e assim justificar – junto aos pais, familiares, cuidadores, Supervisão Técnica de Saúde de Capela do Socorro e Coordenadoria Regional de Saúde Sul – a importância desse momento para os adolescentes frequentadores do CAPS. Essa entrega implicou alinhamento da equipe à ação e disponibilidade para vivenciar novas descobertas coletivamente.
Resultados obtidos
A participação no Acampadentro permitiu aos adolescentes descobrir uma nova forma de estar no mundo, em liberdade, longe de quaisquer amarras, plena de possibilidades. No que toca à equipe, foi possível juntar-se aos adolescentes em outro contexto: os encontros aconteceram de forma leve, natural, e os papeis de cada um foram reinventados, dentro possível, levando-se em consideração os mais vivos desejos e expectativas de ação de todos.
Realizou-se mais um AcampaDentro, esse no CAPS II Infanto-Juvenil Capela do Socorro, em julho de 2015. A noite foi repleta de músicas, brincadeiras e refeições em grupo. Novamente os adolescentes foram protagonistas; com liberdade, criatividade, cuidado e respeito às diferenças, tomaram conta do espaço do CAPSij.
Esse intercâmbio dos participantes nos diversos espaços de cuidado para as crianças e adolescentes, da vivência real marcada nos corpos, das potencialidades despertas, levou à multiplicação do dispositivo do AcampaDentro na Rede de Atenção Psicossocial do Município de São Paulo e em mais algumas cidades do estado de São Paulo, a exemplo de Jundiaí.
Ficou patente que, para trabalhar com a saúde mental na infância e na adolescência, em primeiro lugar é preciso subverter a ordem estabelecida das coisas. Muito do que é considerado essencial no mundo capitalista, como organização, garantias, linearidade, prazos e hierarquia, por um momento, pode ser suprimido.
É preciso dedicar o devido respeito à liberdade, criatividade, linguagem/sintonia, oportunidade, plasticidade e compreensão; e mostrar a abertura de visão necessária para se adotar e sustentar outra lógica de ação. Por vezes, isso implica o desmonte de algumas estruturas até se perceber o essencial; e custa muito menos do que se imagina, para ser compartilhado.
Conclusões
Não permitir quaisquer amarras tem sido a prática norteadora das ações terapêuticas desenvolvidas pela equipe do CAPS II Infanto-Juvenil Capela do Socorro. Procurou-se potencializar cada sujeito em sua mais íntima essência de ser e forma de se apresentar, evidenciando sempre os desejos, ajudando-o a produzir e concretizar essa maneira de ser nos espaços pelos quais circulou.
Cuidar de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico grave e persistente ou em uso de substâncias psicoativas, a partir de ações como o AcampaDentro, mostrou que a liberdade, o respeito à diversidade e a contratualidade terapêutica são ferramentas-chave para a desconstrução de formas manicomiais de assistência.
Como principal conclusão, recomenda-se que espaços e práticas como o AcampaDentro continuem a se multiplicar por toda a Rede de Atenção Psicossocial à infância e juventude, deflagrando outras experiências inovadoras, inclusive em áreas como Educação, Assistência Social, entre muitas outras.
A equipe aposta que ações afirmativas do protagonismo dessa população, compartilhadas coletivamente, são essenciais para garantir os direitos e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes na comunidade.