Comunicação com a comunidade, diálogo com as periferias e isolamento centralizado. Experiências inovadoras, desenvolvidas no Rio Grande do Sul, em São Paulo e no Rio de Janeiro, são exemplos de como é possível reposicionar a Atenção Primária à Saúde (APS) para fortalecer o vínculo e o cuidado durante a pandemia. Enquanto a maioria das respostas à Covid-19 estão focadas na atenção hospitalar, estas iniciativas demonstram a potencialidade da APS para atuar junto às populações mais vulneráveis.
As inovações foram apresentadas nesta quinta-feira (14/05), durante a live APS forte: práticas no combate à Covid-19 nas comunidades, transmitida pelo Portal da Inovação na Gestão do SUS. Os expositores foram a residente de medicina familiar, Mayara Floss; o médico de família e comunidade, Rafael Cangemi; e a professora de medicina de família e comunidade do Hospital Albert Einstein, Patrícia Chueiri. A moderação foi feita pelo coordenador da Unidade Técnica de Sistemas e Serviços de Saúde da OPAS/OMS, Renato Tasca. O assessor técnico da Coordenação Geral de Financiamento da Atenção Primária da SAPS/MS, Dirceu Klitzke, foi convidado para atuar como debatedor.
Na avaliação de Renato Tasca, estas três experiências recentes mostram que o primeiro nível de resposta à Covid-19 está no território, nos serviços próximos à comunidade, onde a epidemia se desenvolve e depois se propaga. “Precisamos focar não apenas nos temas mais conhecidos da APS, como a capacidade clínica, mas também nos outros atributos, ditos derivados, que são os divisores para uma APS efetiva que se projeta na comunidade”, disse Tasca que lembrou o exemplo desastroso da Itália, onde a Atenção Primária no início do enfrentamento à pandemia. “É um fracasso desenhado, responder somente com hospitais”, ponderou.
Em Porto Alegre – RS, os profissionais da unidade de saúde Costa e Silva, no bairro Rubem Berta, usaram a criatividade para reorganizar o espaço de cuidado, mantendo o vínculo com os pacientes, mesmo a distância. No início de março, logo que foram confirmados os primeiros casos positivos de Covid-19 na capital gaúcha, a equipe adaptou os consultórios, montando estúdios improvisados, e criou um programa de rádio para a comunidade. O programa Fica em Casa é produzido e gravado pelos profissionais de saúde e transmitido via aplicativos de celular para os pacientes.
A idealizadora do projeto, a residente Mayara Floss, contou que as gravações são feitas entre um atendimento e outro, nos aparelhos de celular, e que os roteiros são elaborados com a contribuição de toda a equipe, incluindo os agentes comunitários de saúde.
Os temas referem-se a cuidados de saúde, serviços, mas também refletem as demandas que surgem na unidade, englobando questões sociais, como violência contra a mulher, racismo, gênero e sexualidade. “A gente conseguiu entender a comunidade e trabalhar com recursos simples. Há muitas informações chegando, e é difícil distinguir o que é fakenews. Quando a gente faz isso no contexto de micropolítica, permeando a educação popular, a gente consegue ser uma voz de confiança”, constatou.
A Clínica da Família Sérgio Vieira de Mello, no bairro Catumbi, no Rio de Janeiro, desenvolveu ações intersetoriais para proteger as pessoas mais vulneráveis do território. O médico de família e comunidade Rafael Cangemi explicou como foram desenvolvidas as ações, para abranger as 24 mil pessoas cadastradas na unidade.
Diante da pandemia, a população parou de ir à unidade de saúde, por causa das medidas de isolamento social. “Percebemos o aumento de atendimento a pessoas com sintomas gripais, enquanto as pessoas com doenças crônicas, vítimas de violência doméstica, deixaram de buscar ajuda. Inicialmente, uma de nossas preocupações foi com um atributo, chamado de derivado, mas que é o principal da APS, que é a abordagem comunitária”, destacou.
Na primeira semana de implantação das medidas de isolamento no estado do Rio de Janeiro, a equipe se reuniu com as associações de moradores das comunidades atendidas no entorno do bairro Catumbi. O médico conta que houve situações em que os líderes do tráfico de drogas também participaram. “Foi preciso entender a questão da competência cultural. As comunidades possuem características diferentes e têm comandos, facções com domínios diferentes”, revelou.
Com esta abordagem, os profissionais de saúde conseguiram o apoio dos moradores, que chegaram a cancelar bailes funk, entendendo que estes eventos potencializariam a propagação do vírus.
A cada 48 horas, todos os pacientes atendidos com síndrome gripal recebem uma ligação telefônica. A equipe também foi em busca dos pacientes com doenças crônicas que eram atendidos na unidade e passou a monitorá-los com teleatendimento. Com a ajuda dos agentes comunitários de saúde, conseguiram identificar mulheres em situação de violência e criaram um canal de comunicação via aplicativo de celular, para elaborar estratégias de abrigamento. “Trabalhamos com uma planilha de violência e percebemos que, nos últimos meses, a maioria dos casos notificados na unidade foram relacionados ao suicídio. Em função do isolamento, isso poderia se complicar”, comentou.
O Projeto Casulo, em Paraisópolis, no município de São Paulo – SP, nasceu da articulação entre moradores, comerciantes e a sociedade civil organizada. As ações promovem o isolamento centralizado de pessoas sintomáticas com teste positivo para Covid-19 e distribuição de máscaras, álcool gel e material informativo para pessoas com síndrome gripal.
Durante a apresentação, a professora Patrícia Chueiri, que compõe a equipe técnica do projeto, destacou o contexto de intensa desigualdade social em que a comunidade está inserida. Situada ao lado do Morumbi, bairro nobre da capital paulista, Paraisópolis possui a maior densidade demográfica do Brasil: 45 mil pessoas por quilômetro quadrado. Apenas 25% das residências têm rede de esgoto, de acordo com dados do IBGE e do Mapa da Desigualdade de São Paulo.
A região possui três Unidades Básicas de Saúde, cobrindo 79,5% da população. O isolamento centralizado é feito em duas escolas da comunidade, que foram adaptadas para ficarem parecidas com casas, buscando a humanização da proposta. Segundo Chueiri, entre as pessoas que realizam o teste, 75% apresentam resultado positivo. Destes, 50% vão para o isolamento, onde continuam sendo monitorados, por telefone, pela equipe de saúde.
Na avaliação de Chueiri, o projeto apresenta um problema de gênero. “No começo do projeto, muito mais homens iam para o isolamento, justamente porque as mulheres são encarregadas de ficar com as crianças. E nós não conseguimos uma logística para receber crianças ou menores de 18 anos. É um problema”, admite.
O assessor técnico da coordenação geral de Financiamento da Atenção Primária da SAPS/MS, Dirceu Klitzke, destacou o caráter inovador das experiências e o reposicionamento do papel da APS na pandemia. “A luta pelo enfrentamento da Covid-19 é uma luta longa. E esta luta vai ser travada na Atenção Primária”, pontuou.
Na opinião de Klitzke, a APS está no momento de redobrar os esforços, para seguir fazendo o que já fazia e, ao mesmo tempo, atender a pandemia. Para ele, as experiências apresentadas na live possuem em comum a intersetorialidade e a participação social. “Estas experiências trazem à tona o entendimento sobre o conceito ampliado de saúde e aspectos muito fortes de construção de cidadania”, complementou.
Para obter mais informações sobre o Programa Fica em Casa, desenvolvido em Porto Alegre, acesse os links:
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