De tempos em tempos, algumas questões de saúde entram na seara do debate público e criam polarização de opiniões em relação a seus pressupostos, indicações e responsabilização. A tomada de decisão em relação à via de parto abdominal (cesariana) tem estado neste foco nos últimos tempos.
O parto é um evento natural, clímax do processo de reprodução. Entretanto, o conceito de fenômeno natural não excluiu a possibilidade de intervenção humana para modular seus efeitos. Exemplo disto é a presbiopia (perda da visão para perto – leitura) que ocorre naturalmente após os 40 anos e pode ser corrigida com o uso de óculos (modulação externa).
O que, todavia, gera tanta controvérsia em relação às cesarianas? Vou dar uma contribuição pela minha perspectiva profissional e de vida.
Parto vaginal é um evento muito doloroso. A tradição cristã expressa pela Bíblia Sagrada referenciou a dor do parto como um castigo imposto ao sexo feminino em virtude da desobediência de Eva a um mandamento divino. O Livro de Gênesis registra que Deus disse à mulher: “Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua concepção; com dor darás à luz filhos…” (Gênesis 3:16).
Desde então, em nossa cultura, o parto doloroso tornou-se uma punição divina e difundiu-se na sociedade como um momento de intensa agonia, cercado de tabus e desinformação. De maneira muito resumida, permito-me relacionar toda a confusão gerada pela via de parto ao fato da dor por ele provocada. Fosse o parto vaginal um evento indolor ou pouco doloroso, nada dessa polêmica haveria sido suscitada.
Hoje em dia é possível modular o efeito das dores do parto vaginal por métodos naturais (banhos, massagens, apoio emocional, mobilidade, etc.) ou por métodos farmacológicos (analgesia epidural por cateter, por exemplo). Até mesmo a percepção da dor apresenta um alto grau de variação individual, relacionada à formação biopsicossocial de cada um. Cecil Helman, em seu livro clássico “Cultura, Saúde e Doença” nos ensina que “cada cultura, grupo social ou mesmo famílias têm a sua linguagem própria, por vezes até um idioma através dos quais, os indivíduos que não se sentem bem ou estão infelizes, são capazes de comunicar aos que os rodeiam o seu sofrimento. Alguns grupos demonstram comportamentos e emoções de formas extravagantes em presença da dor, enquanto outros demonstram uma atitude estóica. Todos estes comportamentos estão relacionados com os grupos de pertencimento, crenças, valores, imaginários, cultos e práticas que caracterizam a sua própria cultura.”
Posso arriscar, com todas as vênias à divergência, que a opção da mulher pela cesariana está fortemente relacionada à possibilidade concreta de “livramento” das dores do trabalho de parto. Ninguém gosta de sentir dor forte, ainda mais em um cenário cultural onde o assombro do parto persegue a mulher desde antes de sua gestação, por relatos de amigas, vizinhas, parentes e da mídia. É muito comum nos serviços de obstetrícia o pedido “faz cesárea doutor” nos momentos em que as dores do trabalho de parto tornam-se mais intensas.
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que, com uma taxa de 55%, o Brasil ocupa a segunda posição no ranking de países com maior porcentagem de cesáreas no mundo. A perspectiva que coloco, entretanto, não pretende reduzir esta “epidemia” de cesarianas no Brasil apenas à questão da dor. Sabe-se que a conveniência profissional do médico, o medo da “mutilação” genital causada pelo parto vaginal e a falta de informação correta sobre as vias de parto e suas conseqüências ainda precisam ser abordadas como fatores concretos para a redução dos partos cirúrgicos desnecessários.
Quando uma cesariana é a via de ideal de parto? Segundo afirma a OMS, “ quando ela é necessária1”. Ou seja, parto vaginal continua sendo a via de parto preferencial, com menor associação a mortalidade materna e fetal – e a cesariana um importante instrumento acessório na resolução do parto pela via abdominal quando for necessária e o risco materno e/ou fetal justificarem os riscos da intervenção cirúrgica.
A via do contencioso legal não é a ideal para abordar a questão da via de parto. O momento do parto apresenta alta variabilidade individual, até mesmo em partos da mesma mulher em momentos distintos de sua vida. Não existe parto igual ao outro. Existem protocolos técnicos gerais para observar-se o mecanismo do parto e suas variações, e eles devem ser aplicados a cada situação individual, gerando então as conclusões que permitam a correta decisão clínica pela via que trará melhor resultado para mãe e bebê. O parto “normal” será aquele melhor indicado a cada caso.
Minha opinião é a de que protocolos de analgesia ao parto vaginal deveriam ser amplamente discutidos, validados e implementados nas maternidades públicas de todo o Brasil. A oferta de parto vaginal com abordagem efetiva à dor já é realidade para gestantes com melhor padrão aquisitivo da rede privada e deveria ser estendida como política pública geral a todas as maternidades do SUS. Há custos financeiros envolvidos nesse processo – que também devem ser considerados e previstos sob a justificativa de mitigar o impacto cultural do parto doloroso e contribuir para a redução de cesarianas atreladas ao medo do parto vaginal.
A analgesia pública e gratuita ofertada no SUS permitirá modular o castigo imposto pelo Gênesis. As equipes multidisciplinares de atenção ao parto não precisarão ficar tão penalizadas ao terem que presenciar a dor aguda das mulheres sob seus cuidados. O alívio da dor causará a ruptura do paradigma do sofrimento psíquico atrelado ao processo físico do parto, permitindo a melhor aceitação do parto vaginal. Se conseguirmos avançar nesse sentido, resgataremos para o momento do parto a sua beleza e alegria genuínas, afastando a exaustão e angústia de um processo de dor incapacitante para o qual dispomos de métodos eficazes e seguros de controle.
1 – https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf;jsessionid=FA0FF2C5E46F61B28045440F97 AF6DC2?sequence=3
- Por Newton Lemos, Médico Ginecologista, Obstetra, Especialista em Gestão de Políticas de Saúde e colaborador da OPAS/OMS Brasil