O Centro de Convivência e Cooperativa (CECCO) Padre Manoel da Nóbrega se localiza no bairro de Arthur Alvim, em São Paulo, e é um serviço da Secretaria Municipal de Saúde que tem como objetivo a promoção da saúde, o desenvolvimento de potencialidades e a convivência/inclusão de seus usuários. Esse equipamento, que pertence à Rede de Atenção Psicossocial (Portaria GM 3.088/11- Ministério da Saúde), localiza-se em um distrito da periferia de São Paulo que apresenta um alto número de mortalidade de jovens entre 15 e 24 anos e vem enfrentando o desafio da vulnerabilidade e da violência paulistana. Vulnerabilidade é um tema atual, e sua relevância consiste em ser um tema transversal presente nas políticas de saúde, educação e assistência social, demandando ações integradas e intersetoriais.
Em 2015, a equipe do CECCO Nóbrega passou a defrontar-se mais com essa problemática da vulnerabilidade e com o fato das crianças e adolescentes não frequentarem o serviço. As reflexões acerca do motivo provável dessa situação evidenciaram que as atividades oferecidas não eram atrativas para esse público, pois a maioria dos frequentadores do serviço eram adultos e idosos.
A Supervisão Técnica de Saúde da Penha, no ano de 2016, investiu no fortalecimento da RAPS, enfatizando a importância dos trabalhos em rede intersetorial no território. Isso proporcionou ao CECCO maior atenção e abertura aos trabalhos em parceria com a comunidade e outros serviços públicos.
Uma situação inusitada
Certo dia do mês de março de 2016, o segurança da unidade percebeu algo inusitado. Alguns adolescentes que estudavam na escola vizinha estavam pulando o muro da horta do Centro de Convivência para acessarem a rua. A coordenadora do CECCO, ao saber da situação, pediu ao segurança que a avisasse quando isso ocorresse novamente. Pensava que conversar com os adolescentes poderia ser uma oportunidade para se aproximar deles, escutá-los, entender o que estava acontecendo e talvez iniciar um trabalho com esses jovens.
Poucos dias depois, três adolescentes pularam o muro e o segurança pediu para que esperassem um pouco, pois tinha alguém que queria conversar com eles. Isso os amedrontou, pois pensaram que seriam punidos. A coordenadora se apresentou e começou a conversar gentilmente com eles, junto com o segurança. Os jovens tentaram dizer que estavam pulando o muro para pegar uma pipa que havia caído fora da escola. Os profissionais do CECCO se entreolharam e apontaram para o céu, que estava nublado e garoando, sem possibilidade de pipas. Todos riram juntos e a conversa foi ficando mais descontraída, os jovens ficando mais receptivos. A coordenadora contou qual era a proposta do CECCO, inclusive dizendo que precisava da ajuda deles para pensar atividades que despertassem interesse nos adolescentes, que infelizmente não frequentavam o local.
No início da conversa eles pareciam desconfiados, depois se sentiram mais à vontade e disseram que estavam cabulando aula porque a escola era “um saco” e iam para a praça fumar maconha. Não apresentaram interesse em outras coisas, só por drogas, álcool e sexo. Não tinham uma crítica na forma que levavam a vida, não pensavam em futuro, só no “aqui e agora”.
Foi feito o convite a eles para que voltassem ao CECCO, oferecendo a possibilidade de serem feitas algumas atividades que seriam do interesse e desejo deles. Eles acabaram retornando esporadicamente. Nessas ocasiões, era propiciado momentos de conversa e de lanche.
Dessa situação inusitada, a coordenadora vislumbrou a oportunidade de alguma ação, mesmo que ainda indefinida, com estes adolescentes. Levou a situação para a reunião de equipe e surgiram diferentes posicionamentos. Alguns achavam que dar abertura para esses jovens, “que poderiam ser infratores”, poderia nos colocar em perigo. Mas, outra parte da equipe achava que tinha que ser feito alguma coisa, oferecer algo e que eles pudessem ter um espaço no CECCO onde se sentissem acolhidos. E o questionamento ainda mais elavilnews: como o CECCO, frequentemente utilizado por uma população adulta, conseguiria sensibilizar e promover a adesão desses jovens em suas oficinas?
“Você quer que eu aumente o muro?”
Entramos em contato, então, com a escola vizinha, Escola Estadual Professor Octacílio de Carvalho Lopes, para saber mais sobre esses jovens e pensar interessetorialmente a problemática da evasão escolar e da vulnerabilidade na adolescência no nosso território. Porém, a direção da escola não retornava os contatos telefônicos. Após três semanas de espera sem retorno, a coordenadora decidiu ir até à escola pessoalmente, sem avisar. Foi atendida pelo vice-diretor, que logo disse: “meus alunos estão dando trabalho, pulando o seu muro… o que você quer eu que faça? Aumentar o muro?”. A coordenadora brincou e disse que, na verdade, gostaria de fazer uma passagem da escola para o CECCO, porque os adolescentes também não entravam pela porta da frente, só pelos fundos, pulando o muro. A partir desse encontro, iniciou-se a parceria com a escola.
A coordenadora do CECCO também soube pelo diretor do Centro Cultural da Penha que os adolescentes e jovens ficavam ao redor do Centro Cultural, utilizando drogas, bebidas alcóolicas e apresentavam comportamentos sexuais, porém, também não frequentavam o local. Organizou-se, então, uma reunião com o Centro Cultural Penha, a Escola Octacílio, uma oficineira do CAPS Adulto V. Matilde e a educadora de saúde CECCO. Nessa reunião, reuniram-se esforços para pensar em como atingir aquela população de jovens vulneráveis.
Acolhendo sem estigmatizar
Desse encontro movido pela angústia, algumas ideias surgiram para trabalhar com a necessidade de o jovem ser visto e ouvido. Pensou-se na proposta de Intervenção Urbana, oficina mais aberta, curta e com movimento que possibilita uma mudança na convivência, em que o grupo se sobressai de uma maneira diferente e constrói novas narrativas com os jovens, possibilitando, assim, alterar os espaços ao seu redor.
A Escola Octacílio propôs que o grêmio estudantil da escola fosse até o CECCO, pois acreditava que os estudantes poderiam contribuir na construção do projeto. Na semana seguinte, alguns adolescentes do grêmio compareceram ao CECCO. Levantou-se interesses e possibilidades de parceria entre a escola e o CECCO, como festas, palestras, eventos, oficinas. O grêmio dos estudantes então se propôs a pesquisar os interesses entre os alunos. O que acabou se destacando na enquete realizada pelos jovens foi o interesse em oficinas de teatro.
Dois meses depois, iniciaram os encontros na escola com a oficineira do CAPS, profissionais do CECCO e, aproximadamente, 40 alunos interessados nas artes cênicas. Foi proposta uma atividade de Intervenção Urbana para que os jovens construíssem uma apresentação escolhida por eles, relacionada ao dia da Consciência Negra. A partir daí, foram agendados encontros semanais, entre o período da manhã e tarde. Alunos do fundamental 2 e nível médio se misturaram e criaram cenas de preconceito racial que boa parte deles tinha vivenciado.
Dificuldades se transformando em oportunidades
Apesar de, inicialmente, o acesso ao diálogo com a escola ter sido difícil, durante o processo não houve esse problema. Pelo contrário, a direção abriu várias portas, solicitando ajuda para lidar com algumas dificuldades que encontravam no dia-a-dia com os alunos.
Em alguns momentos, parecia que os alunos não estavam interessados, e os profissionais desanimavam, não sabendo o que iriam conseguir fazer. Porém, a todo tempo lembrávamos que o principal objetivo era estar com os adolescentes, e que a apresentação era um instrumento que possibilitava esse vínculo.
No início do ano seguinte, o CECCO foi convidado a participar de um grupo de teatro dessa mesma escola, organizado pelos alunos do segundo grau e os professores de filosofia e de sociologia. Um dos professores havia selecionado alguns textos para trabalho em sala de aula, e uma das alunas se interessou pela peça “Lisístrata – A Greve do sexo”, de Aristófones. Ela sugeriu ao professor que encenassem a peça. O professor concordou e pediu para que ela organizasse o grupo com os alunos do segundo grau. O CECCO e o professor deram um suporte para essa construção; e o novo psicólogo do CECCO ofereceu as oficinas de teatro, que duraram 3 meses e estimularam o protagonismo e a independência do grupo, que contou, inicialmente, com 35 alunos.
No primeiro semestre de 2017, foram oferecidas as oficinas de teatro e observou-se que alguns alunos não se mostravam muito interessados, e não se implicavam com o que era proposto, desanimando outros alunos mais participativos e envolvidos. Existia uma ansiedade em querer ensaiar a peça, decorar as falas, mas os jovens eram alertados de que tinha que ter um mínimo aprendizado, conhecimento da voz e expressão corporal antes mesmo do ensaio da peça em si. Alguns acabaram desistindo no meio do percurso.
No segundo semestre de 2017, houve alguns imprevistos, e a antiga coordenadora do CCECO, agora atuando como psicóloga do serviço, assumiu o grupo com o aval dos jovens – mesmo sem nenhuma experiência com teatro. Ao começar a estudar o texto da peça, o grupo se deparou com uma linguagem muito rebuscada, de difícil acesso, pois o texto era uma comédia grega. Os alunos tiveram a ideia de procurar na internet e acharam um grupo de teatro que apresentou essa peça. Nesse momento, o grupo demonstrou estar mais coeso, com um objetivo comum, e se esforçava para obter outra linguagem mais acessível, conforme a realidade deles. A psicóloga do CECCO teve como função mediar essas construções que partiam deles, pois, algumas vezes, eram ideias fora do alcance do grupo. Em outros momentos, ela teve o papel de facilitadora do processo grupal, mediando os conflitos que surgiam.
Desdobramentos
Em 2016 a intervenção urbana ensaiada pelos jovens foi apresentada no Centro Cultural da Penha no evento sobre a Consciência Negra, organizado pela Supervisão Técnica de Saúde da Penha. Houve a aceitação de imediato desse convite por parte dos adolescentes, o que surpreendeu a todos.
Algumas oportunidades surgiram, como a mescla dos alunos de períodos escolares e idades diferentes, ocorrendo a possibilidade de se conhecerem e interagirem.
Os adolescentes começaram a se interessar pelas atividades do CECCO e a participar de eventos e festas (junina, primavera, final de ano), inclusive com participações artísticas.
Houve a apresentação do grupo “ATHENAS COMIC” (nome escolhido por eles) da peça “A greve do sexo” no CECCO numa tarde de teatro com a participação e apresentação do grupo de teatro de outro Centro de Convivência da região – CECCO Raul Seixas. Na escola, aconteceram 3 apresentações no mesmo dia para os alunos do segundo grau.
Foi oferecido um espaço acolhedor para o diálogo/conversa sobre questões relacionadas à diversidade que sugiram durante o projeto, como orientação sexual, preconceito, conflitos familiares, transtornos mentais e tratamentos.
Essas ações possibilitaram desdobramentos como o surgimento de um novo projeto chamado “Meu Bairro”, que tem por objetivo promover a saúde ambiental do território, em que participam o grêmio estudantil da escola, outras unidades públicas de educação, do esporte e comunidade. Além disso, o projeto favoreceu novas ações do CECCO na Escola, como participação do Evento Setembro Amarelo em 2018.
E os jovens que pularam o muro?
Infelizmente, os três alunos que pularam o muro do CECCO acabaram não participando das atividades oferecidas posteriormente, apesar dos esforços da coordenação do serviço, que foi até às salas de aula na tentativa de encontrá-los e convidá-los a participar. No entanto, soube-se que um deles estava na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) e outro foragido. O único jovem contactado não quis participar do projeto.
Esses jovens, apesar de não terem participado do grupo de teatro e seus desdobramentos, foram os responsáveis pela mudança de postura dos profissionais do CECCO, que se sensibilizaram e buscaram alternativas para se trabalhar com essa população.
A ausência deles no projeto deixa em aberto a pergunta que permanece desde o início, e que continua como um desafio: como se aproximar desse público adolescente vulnerável?
A estratégia encontrada no decorrer do Projeto Pulando Muros foi a da promoção da saúde e da prevenção de agravos com adolescentes por meio da aproximação com os alunos, e com a valorização e integração dos espaços através da arte, facilitando, assim, os jovens a serem mais protagonistas de sua realidade.
Ainda há muito o que aprender, os desafios permanecem para estimular nosso objetivo, as frustrações serviram de incentivo para novas e calorosas discussões, em busca de troca de experiências com outros trabalhos afins, estratégias de vínculos e oficinas, para que, através desse aprendizado e experiências, consigamos melhorar nossa aproximação e caminhar em direção ao nosso maior objetivo e desafio: trabalhar de forma efetiva a problemática da vulnerabilidade social na adolescência.