O projeto de Adolescentes Multiplicadores de Saúde é desenvolvido no Centro de Atendimento Intensivo CAI – Belford Roxo, uma Unidade de internação masculina do DEGASE – Departamento Geral de Medidas Socioeducativas, órgão responsável pela execução de medidas socioeducativas em meio fechado para o atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, vinculado à Secretaria Estadual de Educação. O CAI fica localizado no município de Belford Roxo, baixada fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro que apresenta baixo índice de desenvolvimento social e alto índice de violência. A capacidade da unidade é para atendimento de 120 adolescentes e a sua estrutura arquitetônica e organizacional não atende aos princípios e critérios previstos no SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que busca o desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos direitos humanos, no respeito à condição peculiar do adolescente enquanto sujeito em desenvolvimento e na prioridade absoluta no atendimento e acesso às políticas públicas.
Os adolescentes em atendimento socioeducativo de internação no CAI são acompanhados por uma equipe multidisciplinar composta por assistente social, psicólogo e pedagogo, frequentam o ensino regular na Escola Estadual Jornalista Barbosa Lima Sobrinho localizada no interior da unidade, participam de cursos profissionalizantes e atividades culturais e pedagógicas e são acompanhamentos pela equipe de saúde integral do socioeducativo em articulação com os serviços de saúde do SUS no território. Entretanto devido à superlotação da unidade, a insuficiência de recursos financeiros para a política de socioeducação e a dificuldade de efetivar o princípio da intersetorialidade nas políticas públicas esse acompanhamento é prejudicado e descontinuado, contribuindo para um cenário de violações de direitos a serem enfrentados pelos profissionais da socioeducação no dia a dia de seu trabalho.
Em março de 2017 como estratégia para enfrentar esse cenário de violação de direitos agravado com a superlotação da unidade, pelas condições sanitárias e de higiene precárias, resultando no aumento das infecções dermatológicas e das infecções sexualmente transmissíveis demos início as ações do projeto de Adolescentes Multiplicadores de Saúde.
Uma aposta na educação entre pares
O projeto foi pensado inicialmente pela assistente social e pela médica da equipe de saúde mental da unidade socioeducativa, apostando no êxito e nos resultados positivos da metodologia de educação entre pares, o projeto de Adolescentes multiplicadores de saúde foi concebido como uma ação de saúde integral que permitisse aos adolescentes serem protagonistas no processo do cuidado de sua saúde e preservação da vida, participando das ações de planejamento e desenvolvimento das atividades educativas em saúde do adolescente, direitos humanos e cidadania.
Como primeira ação de desenvolvimento do projeto, foram realizadas rodas de conversas com adolescentes participantes dos grupos de saúde integral para ouvir suas ideias e opiniões em relação aos temas saúde, adolescência, cuidado, participação e direitos. Durante a realização dessas rodas, que foram mediadas pela assistente social e pela bibliotecária da unidade, percebeu-se o quanto os adolescentes precisavam falar sobre suas histórias de vida, suas dúvidas em relação ao cuidado em saúde, namoro, à prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, uso de drogas, histórias de violências, à falta de regularidade dos atendimentos técnicos e às condições de insalubridades dos alojamentos.
A realização dessas rodas de conversas contribuiu para a construção da proposta do conteúdo programático do curso de formação que foi oferecido aos jovens. Buscou-se construir um conteúdo que dialogasse com as narrativas e as necessidades de saúde desses adolescentes, abarcando temas relacionados à saúde do adolescente, como: caderneta de saúde do adolescente, infecções sexualmente transmissíveis, crescimento e desenvolvimento, controle de endemias, drogas e adolescência, infecções dermatológicas, primeiros socorros, direitos humanos, prevenção de violências, violência urbana, adolescência e trabalho, saúde bucal, alimentação saudável entre outras temáticas.
Os adolescentes são escolhidos para participar do projeto pela equipe socioeducativa, considerando o desejo e o interesse do adolescente e os seguintes critérios de elegibilidade: 1) domínio de leitura e escrital; 2) permanência de no mínimo quatro meses em cumprimento de medida socioeducativa de internação e 3) disponibilidade para dialogar em relação a diferentes temas sem posturas preconceituosas e violentas.
Cada turma é formada por doze adolescentes e as aulas ocorrem em contra turno escolar, atualmente esta em andamento a quarta turma do curso de formação atingindo assim, o quantitativo de quarenta e oito adolescentes inseridos no projeto de Multiplicadores de saúde.
O projeto não possui orçamento financeiro para o desenvolvimento das ações e também não há espaço físico próprio para a realização das atividades, o que implica a coordenação o trabalho permanente de articulação e sensibilização da comunidade socioeducativa para a construção do calendário de aulas, levantamento dos espaços físicos e recursos didáticos e planejamento das atividades externas.
Formando multiplicadores, construindo pontes
Os adolescentes selecionados participaram de um curso com carga horária de 64 horas, divididas em módulos de aprendizado, com conteúdo teórico e prático relacionados à saúde do adolescente. Nas aulas são utilizados os materiais didáticos elaborados pelos professores e recursos lúdicos como músicas, vídeos, jogos e poesias. Além das aulas o projeto prevê saídas externas para espaços culturais que contribuam para reflexão e para o debate e aprofundamento dos temas trabalhados em aulas.
A metodologia do projeto é participativa e interdisciplinar e busca legitimar a perspectiva da construção do trabalho coletivo em saúde, favorecendo um processo de aprendizagem horizontal a partir da troca de experiências.
O corpo docente é interdisciplinar, envolvendo profissionais de diferentes áreas de conhecimento, na perspectiva de trabalhar o conceito ampliado de saúde. Nesse sentido, o projeto conta com profissionais do serviço social, psicologia, enfermagem, medicina, odontologia, nutrição, educação física, teatro, direito, terapia ocupacional, biblioteconomia e com agentes socioeducativos.
No desenvolvimento das aulas práticas, os profissionais de enfermagem, serviço social, educação física, teatro e terapia ocupacional têm uma maior participação de carga horária e atuação no projeto, sendo responsáveis pela supervisão de campo dos alunos e no apoio ao planejamento e execução das atividades educativas que os Adolescentes Multiplicadores realizam para os demais adolescentes em atendimento socioeducativo e para as famílias, elencando os temas prioritários e a metodologia de trabalho para cada atividade.
Para efetivação dessas ações é necessário uma organização institucional que envolveu todos os atores presentes no sistema socioeducativo desde a direção da unidade, a equipe técnica, a equipe de saúde, os profissionais da escola e os agentes socioeducativos. Essa organização e/ou interlocução para a realização do trabalho pedagógico com o objetivo do fortalecimento da participação e do protagonismo juvenil é um desafio e impõe um permanente enfretamento a dimensão punitiva presente no contexto da socioeducação.
O enfrentamento as dificuldades impostas à consolidação do trabalho ocorrem mediante a atuação e o comprometimento de cada profissional envolvido e do reconhecimento da importância do projeto pela gestão da unidade.
A construção coletiva de um projeto de juventude inclusivo
As atividades educativas de promoção de saúde contemplaram as seguintes temáticas: direitos humanos e cidadania, saúde sexual e reprodutiva, autocuidado e higiene, prevenção do uso de substâncias psicoativas, saúde e esporte, paternidade responsável e prevenção de violências. Essas atividades são trabalhadas de forma lúdica e artística, por meio do teatro, da música, do esporte e de jogos como instrumento para sensibilizar e estimular a participação dos jovens.
Na perspectiva da participação e do protagonismo juvenil, os Adolescentes Multiplicadores de Saúde ocupam espaços importantes e estratégicos de planejamento e ações em saúde, no socioeducativo, na educação e na saúde. Participaram de um curso de direitos sexuais e reprodutivos, ministrado no socioeducativo, via uma articulação entre o CAI – Baixada e a Escola de gestão socioeducativa e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Nesse curso, foram construídas diretrizes para a implantação e acesso ao preservativo na unidade.
Os adolescentes também participaram da Mesa-redonda: “Trocando Experiências – protagonismo e participação de adolescentes”, no Fórum de sensibilização para implantação da Agenda Proteger e Cuidar de Adolescentes na Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. A participação dos adolescentes também aconteceu no projeto DiverSUS, do Ministério da Saúde, em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), em que foi trabalhada a temática da paternidade no formato de Educomunicação. Por fim, os adolescentes participaram da 3a edição do Laboratório de Inovação na Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens da Coordenação Geral da Saúde de Adolescentes e de Jovens do Ministério da Saúde e do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).
Para os profissionais envolvidos no projeto, ver esses adolescentes e jovens participarem de forma potente das ações de promoção de saúde, prevenção de violências, preservação da vida e de espaços importantes como os citados, representa a construção coletiva de um projeto de juventude inclusivo, com visibilidade para as necessidades e potencialidades desses sujeitos de forma a reconhecer e garantir seus direitos.
A participação desses adolescentes nos espaços de elaboração, execução e avaliação das ações de saúde contribuiu no estabelecimento de novas relações entre os adolescentes multiplicadores e os profissionais da socioeducação e entre os demais adolescentes em atendimento socioeducativo. Esse lugar de protagonista e de referência em saúde dentro da unidade socioeducativa possibilitou o desenvolvimento de ações conjuntas entre os adolescentes afastadas das práticas violentas e na direção da preservação da vida, enfraquecendo o poder das facções criminosas no estabelecimento das permissões e restrições nas condutas dos adolescentes em atendimento socioeducativo.
Os adolescentes destacam em suas narrativas que participar do projeto Adolescentes Multiplicadores de Saúde possibilitou assumir um lugar de fala, no qual se sentem importantes e valorizados por suas ideias e ações. Representa, para eles, conseguir circular pela unidade socioeducativa, permanecendo menos tempo no isolamento do alojamento; significa aprender e ensinar coisas novas a seus pares; de se tornarem, pelo trabalho realizado, um motivo de orgulho para a família. Significa, principalmente, voltar a acreditar que conseguem adotar atitudes positivas e afastadas de práticas violentas, renovando o horizonte possível para os seus projetos de vida. Os relatos de alguns adolescentes são elucidativos:
“Ser adolescente multiplicador de saúde fez minha mãe acreditar novamente que eu posso falar a verdade e fazer coisas boas para minha vida e para as outras pessoas”. (P. 16 anos)
“Aprendi muitas coisas diferentes em relação à saúde e a evitar doenças e também pude ajudar os outros adolescentes do meu alojamento”. (W, 17 anos)
“Estou gostando muito de participar do projeto, de conhecer novos espaços, o museu é lindo, quando sair daqui irei levar meus irmãos para conhecer” (A, 15 anos)
“Me sinto até importante. Os profissionais perguntando minha opinião de como os adolescentes irão gostar de aprender a prevenir doenças” ( L, 17 anos)
“Conversamos muito na aula de assuntos que na pista ninguém para pra pensar…falamos do racismo, da violência, de procurar outros caminhos e de Ser um bom pai” (E, 18 anos)
Os desafios para a implementação do projeto ultrapassam o campo simbólico das disputas de narrativas e do confronto entre os paradigmas pedagógico e punitivo presentes na socioeducação e pressupõe o enfretamento da precariedade dos serviços socioeducativos que implica no déficit de profissionais, na superlotação da unidade e na insuficiência de espaço físico e transporte para as atividades.
Para a continuidade e avanço do projeto é preciso enfrentar os desafios postos a política de socioeducação, a continuidade do apoio da direção do CAI – Belford Roxo no desenvolvimento das ações, apoio da Coordenação de Saúde Integral e Reinserção social do DEGASE para a ampliação do projeto nas demais unidades de socioeducação do Estado do Rio de Janeiro e buscar consolidar a articulação e apoio da Secretaria Municipal de Saúde de Belford Roxo na destinação de recursos via PNAISARI – Política de Atenção Integral à saúde Adolescentes em conflito com a lei, e por fim, fortalecer a participação dos adolescentes e jovens em espaços de visibilidade para à saúde e proteção dessa população.