Grupo da diversidade: a inclusão que inclui

No final de 2015, o Centro de Saúde Adolescentro criou um grupo que contempla a necessidade da clientela e do/as profissionais do serviço em discutir as diversidades sexual e de gênero. Assim, surgiu o Grupo da Diversidade. A ele convergem, inicialmente, aqueles adolescentes e jovens “diferentes” e que, paralela à condição de discordância da ótica moral vigente, apresentavam conflitos familiares, tristezas e quadros depressivos e comportamentais que os/as deixavam ainda mais vulnerabilizado/as em seus contextos familiares, escolares e comunitários.

Esse serviço integra o Adolescentro, que nos seus quase 20 anos de funcionamento, tem atuação especializada em saúde mental de adolescentes e jovens entre 12 e 18 anos. Ao longo desse tempo, o serviço foi procurado por adolescentes em conflito com a cisheteronormatividade branca e sexista. Em uma sociedade conservadora e intolerante como a brasileira, a condição de desviante da norma acarreta grande sofrimento, e até transtornos, às pessoas que não se enquadram nesse modelo que deve ser mantido como forma de controle e dominação social. O simples fato de que ser diferente abala as estruturas do poder dominante!

O Grupo da Diversidade, dispositivo de apoio às intervenções do Adolescentro, potencializa o cuidar e as trocas entre adolescentes e jovens que, frequentemente, estão abandonados na solidão de suas dissensões e sofrimentos. O Grupo da Diversidade transformou-se, assim, em forte instrumento de afirmação e de diálogo de temas que, de regra, não são abordados na ótica tradicional de um serviço de saúde, limitada no tempo da próxima consulta. Demonstra, ainda, ser importante coadjuvante terapêutico para outras questões ligadas ao perfil de atendimento do serviço.

Inicialmente o Grupo reunia-se uma vez por semana, por um período de 2 horas, momento em que eram trazidas questões do cotidiano do/as adolescentes e jovens, geralmente girando em torno da não aceitação dos responsáveis à condição LGBT de seus filhos/as. Propunham-se também discussões temáticas, a partir de filmes que os três facilitadores selecionavam para dar dinamicidade ao Grupo. As manifestações artísticas e culturais de seus integrantes eram estimuladas, e traziam poesia e contentamento às tardes de quartas-feiras. Em alguns momentos, no entanto, a tristeza e o sentimento de empatia tomavam conta dos corações de todas as pessoas presentes.

Com o decorrer das atividades, evidenciou-se a necessidade de os responsáveis pelos adolescentes e jovens – geralmente mãe e pai, mas não só – também fossem ouvidos pelo/as profissionais para que se agregasse mais potência à aceitação de seus filhos e às ações terapêuticas direcionadas ao alívio do sofrimento e/ou dos transtornos. Percebia-se que os/as responsáveis também poderiam estar em sofrimento e que deveriam ser acolhidos e tratados. Passou-se, assim, a ter a conformação do atendimento que perdura até hoje: grupos quinzenais, às quartas-feiras, com os/as adolescente e jovens, intercalados com atendimentos individuais destinados a eles/elas e a responsáveis que se dispuserem participar.

 

A família no processo de cuidado

Entendemos por família as pessoas responsáveis, ou mesmo uma pessoa que se incumbe do cuidado do/a adolescente e jovem – geralmente uma mulher, mãe ou avó – e que comparece às consultas buscando acompanhar o processo terapêutico. É muito comum haver apenas uma pessoa adulta no cuidado do/a adolescente, frequentemente ela é responsável, também, por outra pessoa, que pode ser uma criança ou uma pessoa idosa.

Inicialmente o Grupo da Diversidade foi pensado exclusivamente para adolescentes. Entretanto, entendemos a necessidade de ampliá-lo, incorporando atendimento individual aos pais ou responsáveis, como é da prática dos outros tantos grupos que o Adolescentro mantém. Isso aconteceu em função de que muitos do/as jovens que passaram a frequentar o grupo não mantinham uma relação amistosa com seus pais, muitas vezes pela condição de não se enquadrarem na norma heterossexual e sexista. Ou até mesmo por frequentarem o grupo sem revelarem a seus responsáveis qual era a característica e as discussões e falas que lá se travavam.

Geralmente, a família procura o Adolescentro quando o/a filho/a apresenta sofrimento, ou até transtornos, relacionados à não compreensão ou à discriminação em função da orientação sexual e/ou identidade de gênero discordantes das normas sociais vigentes. Em muitos casos, a própria família pode estar em sofrimento, por, igualmente, não compreender/aceitar a condição do/a filho/a, por ter medos inerentes à rejeição social, ou pelas possíveis consequências emocionais que a situação pode trazer nos ambientes familiar e comunitário.

Nossa equipe entende que a família sempre integra o processo de cuidado, desde o acolhimento, passando pelo acompanhamento do filho/a nas consultas, ou até o atendimento individualizado dos responsáveis. É assegurado espaço de escuta individualizado e sigiloso ao/à adolescente e ao(s) responsáveis. Da mesma maneira que ocorre com os/as adolescentes e jovens, para os pais o projeto terapêutico também é singular, pois cada queixa ou sofrimento deve ser tratado de forma individualizada.

Tome-se como exemplo o caso de Luciano*, garoto 15 anos, em tratamento no Adolescentro desde os 13 anos, cuja maior dificuldade da família residia no fato de ele não se comportar com o que era esperado para o seu gênero masculino. Seu estilo de vestir-se e comportar-se era não-binário, ou seja, uso marcante de maquiagem e de vestimentas femininas e o desejo afetivo-sexual por pessoas de ambos os gêneros. Também havia nele um grande sofrimento devido à ambiguidade e à contradição interna por achar-se o “causador” da dor de seus pais. Assim, frequentemente, e com muito esforço, buscava negar a sua condição e tentava incorporar a heteronormatividade do meio, ferindo a si mesmo e assumindo comportamentos de risco sexual e social.

Outro elemento importante no cuidado com a família é o respeito às questões de religiosidade, componente formador de suas crenças e de expectativas, bem como balizador de normas, condutas e valores morais. A religiosidade vista como elemento que pode, simultaneamente, proteger e desproteger, impõe ao/à profissional ético o respeito às crenças de cada um e a adoção da estratégia de não contestar as escolhas de culto, mas de good-blood-pressure.com os adultos sobre a sua importância no estabelecimento da rede de proteção de seus filhos/as. O suporte parental e o entendimento do contexto familiar são essenciais na prevenção de agravos em saúde mental, tais como evasão escolar, automutilação, depressão, fugas de casa ou tentativas de suicídio.

A distinção entre orientação sexual e opção sexual é outro ponto que frequentemente se faz necessária junto aos responsáveis. A clareza desses conceitos ajuda na compreensão dos termos e no reforço de não-culpabilização de nenhum dos lados, já que não existem determinantes conhecidos para a orientação sexual e a identidade de gênero. Ou seja, ser LGBTI é apenas uma das possibilidades da sexualidade humana.

A despatologização dessa condição também é levada à família, sobretudo quando ela quer saber as causas para a orientação homossexual e a identidade transgênero. Muitos responsáveis creem que existam determinações e condicionantes que podem ter ocorrido durante a gravidez, ou na infância, e que estes influenciaram a orientação sexual do filho/a, seus desejos inconscientes e, por isso, sentem-se culpadas. Faz muita diferença a atitude do/a profissional em acolher a dor da família, em olhar seu sofrimento com empatia, escutar sem julgamento e a demonstrar que ela não está sozinha no processo de compreensão e aceitação da condição do filho/a.

Outra questão frequente é quando o casal/pais está em conflito e passa a atribuir ao outro a “culpa” do comportamento “desviante” do filho/a. A cultura sexista dominante tende a imputar à mulher a culpa, os medos e inseguranças, responsabilizando-a pelos “problemas” que o filho/a apresenta.

Nas famílias em que a questão da identidade de gênero está presente, muitos conflitos, angústias, conflitos, estresse, dores e inseguranças costumam acontecer, sobretudo quando há muita distância entre o tempo de transição do/a adolescente e o tempo de compreensão da família. Importante ressaltar que os responsáveis também precisam de um “tempo de transição” para entender e aceitar o processo de seus filhos. Infelizmente, para alguns adultos, nunca há a aceitação do processo de seus filhos, e, nem mesmo, o respeito.

O “luto” pela perda do filho/a gerado em um sexo/gênero, para dar espaço ao “nascimento” do novo filho/a demanda tempo e alguns cuidados: a escolha do novo nome, as expectativas formadas, a história no contexto familiar, o crescimento, as fotos do passado, a integração do passado e presente, a expectativa sobre a nova pessoa que “nasce”. Acresce-se a isso o fato de que o controle sobre os corpos e a sexualidade é compreendido como papel da família em relação aos filhos.

 

Algumas Lições Aprendidas

Ter uma orientação não heterossexual não significa que haja algo de errado com a pessoa. A diversidade sexual e de gênero faz parte da experiência humana e sempre existiu na história da humanidade. Na adolescência, quando a sexualidade “explode” em expressão, iniciam-se as práticas e sentimentos que demonstrarão a orientação sexual e afetiva dos/as adolescentes. Nesse período temos que estar muito atento/as às manifestações de intolerância e de violência que podem surgir contra adolescentes não enquadrados no modelo dominante, que pressupõe que todas as pessoas são heterossexuais e que se identificam com o gênero atribuído ao nascimento. Crianças e adolescentes que vivem com essa situação podem ter seu desenvolvimento seriamente comprometidos. E, em muitos casos, podem perder a própria vida, tanto no sentido de ingressarem em estados depressivos e disfuncionais, quanto no de não suportarem a discriminação/sofrimento e a exterminarem.

A identidade de gênero nem sempre está alinhada ao sexo biológico. Percebemos que um número cada vez maior de pessoas passa a não se identificar com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento. Essa não-identificação sempre existiu, mas somente agora, no século XXI, surgem as condições para que maior número de pessoas possa assumir essa condição. Na contramão desse processo, existe uma grande reação – que se traduz em intolerância, violência e até assassinatos – a pessoas que ousam ser o que são, diferentes da maioria. Nossa missão é compreender e respeitar essas pessoas, sobretudo as mais jovens, acolhendo-as e dando-lhes as condições para que elas se desenvolvam em toda a sua potencialidade. Afinal, somos profissionais da área social e, nada mais adequado a essa condição do que o exercício consciente de identificar e cuidar de pessoas em maior vulnerabilidade social, sobretudo se elas forem muito jovens e em risco de não desenvolverem seus potenciais em função de preconceitos e da privação de direitos que a nós cabe assegurar.

O suporte familiar e o entendimento do contexto familiar são essenciais na prevenção de agravos em saúde mental do/as jovens, tais como evasão escolar, automutilação, depressão, fugas de casa ou tentativas de suicídio. É importante sentir qual o imaginário, o que significa ser LGBTI naquela conformação familiar. Para tanto, faz muita diferença a atitude do/a profissional em acolher a dor da família, olhar seu sofrimento com empatia, escutar sem julgamento e confirmar que ela não está sozinha no processo de compreensão e aceitação da condição do filho/a. Por outro lado, há que ser firme em assegurar que não cabem atitudes de discriminação e de violência no âmbito da família e da comunidade. Esse posicionamento abre a possibilidade de um diálogo em que os conflitos sejam explicitados e acordos possam ser feitos. Se não for possível tal apaziguamento, podem ser necessários apoios pessoais e institucionais, provenientes de pessoas sensíveis dentro e fora de instituições, como as educativas, de saúde ou o Conselho Tutelar.

 

Meu neto disse que não era mais uma menina

Quando meu neto revelou para os pais que não era mais uma menina, eu já tinha notícia da existência do Adolescentro como sendo um Posto de Saúde da rede pública em Brasília, que dava assistência a adolescentes com questões relativas a saúde mental e uso de drogas. Também havia reparado na discreta placa na entrada, pouco visível para quem circula na avenida L2 Sul. Era o que eu sabia até então. Depois, soube que ali também eram atendidos jovens com questões concernentes à sexualidade.

Em agosto de 2016, meu neto, então com 16 anos, veio de Kuala Lumpur, onde residia com os pais, para passar um ano em Brasília, morando comigo e minha companheira Luíza. Na casa deles o ambiente estava tenso, mãe e pai cansados, e os três irmãos menores, embora não tivessem esboçado nenhuma reação contrária, estavam ligeiramente espantados com o irmão, que há pouco tempo era a irmã.

Em Brasília, a primeira providência que tomei foi ligar para o Adolescentro, cujo número eu havia conseguido por meio do 160. Ao telefone, fui muito bem instruída e para lá fui com meu neto, no dia marcado para o acolhimento.

No Adolescentro, o atendimento prima não só pela eficiência, mas sobretudo pela atenção e carinho com que são tratados os adolescentes que para lá se dirigem ou são encaminhados.

Os servidores públicos que ali trabalham, desde o que preenche as fichas de cadastro, passando pela enfermagem até os profissionais mais graduados, têm um respeito ímpar pela clientela jovem. Durante todo o ano em que meu neto morou conosco, sua agenda foi preenchida com as consultas e atividades oferecidas pelo Adolescentro, de tal modo que o Posto se tornou, depois da escola e das casas das avós, o lugar mais frequentado por ele. Foram muitas e variadas essas consultas, todas marcadas e remarcadas no seu cartão, documento que se tornou, além de indispensável, querido por ele. Está tudo lá: atendimento com a assistente social, com a psiquiatra, com a clínica geral, com a ginecologista, com a nutricionista, sem falar no melhor de tudo (segundo meu neto): as reuniões do Grupo da Diversidade.

O cartão do posto prova tudo isso, caso seja necessário. Porém o que não está escrito nele é o bem-estar em relação a si mesmo, adquirido por meu neto, ao longo desse período de doze meses de frequência ao Adolescentro. Sim, porque mesmo no período de férias, o coordenador conseguia marcar reuniões para que os adolescentes não ficassem sem o porto seguro que o Adolescentro representava para eles. Amizades novas e queridas, entrosamento entre amigos do Posto e da escola, shows e passeios no Parque da Cidade. Meu neto teve bons e alegres dias, que, a meu ver, ajudaram-no na fase em que ele se encontrava nessa bonita e difícil transposição.

Esses dias alegres foram um inestimável alento para mim, a avó, que estava com a imensa responsabilidade de apoiar, acalentar e nutrir de amor, carinho e assertividade, esse conturbado ser em transformação. Não teria conseguido sem o auxílio, a dedicação e a expertise profissional da equipe do Adolescentro.

 

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