A 3a. Edição do Laboratório de Inovação na Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens selecionou 20 experiências. Entre elas quatro foram desenvolvidas no sistema socioeducativo, como a descrita abaixo de autoria do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Cuiabá/MT. O Laboratório de Inovação é uma iniciativa da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Ministério da Saúde.
Relato da experiência – Desenvolvimento do trabalho intersetorial do socioeducativo em saúde mental (Sejudh/MT)
A nossa experiência inicia-se em Maio de 2015, quando o Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) de Cuiabá passa a receber demandas judiciais, via ofício, determinando à equipe de saúde do CASE a inclusão de adolescentes internos para tratamento de dependência química. O CASE é uma unidade masculina de internação para adolescentes em conflito com a lei, vinculada à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH/MT).
Para as famílias, a internação do adolescente é, muitas vezes, considerada a única “saída” para o problema, haja vista a resistência dos adolescentes em aceitar tratamento. Familiares acabam solicitando a internação, pois entendem que quando os filhos estão no CASE permanecem sob cuidados de profissionais e deixam de cometer pequenos atos infracionais para sustentar o vício.
A partir desse cenário, as demandas judiciais tornaram-se frequentes.
O surgimento dessa demanda preocupou os servidores da Coordenadoria de Atendimento Técnico e de Saúde (CATS) do CASE Cuiabá, uma vez que, crianças e adolescentes com necessidades de saúde decorrentes do uso de drogas têm exigido o cuidado em saúde de forma a não reforçar o entendimento de uma lógica sanitário-penal, que culmina no aumento de processos de criminalização da juventude e seu adoecimento psíquico em função da dependência química.
Diante do desafio de atender a uma demanda judicial sem atuar de forma a vir reforçar a lógica indiscriminada de acionamento às internações psiquiátricas e, também em comunidades terapêuticas, uma vez que a equipe de saúde do CASE não vislumbra na ação compulsória o caminho para acolhimento e adesão de adolescentes privados de liberdade, foi necessário o diálogo com a equipe do CAPS AD Infanto Juvenil de Cuiabá (CAPS ADOLESCER) cuja missão é proporcionar atendimento multidisciplinar à pessoas em uso ou abuso de álcool ou outras drogas.
Assim dialogamos com o CAPS ADOLESCER e chegamos ao entendimento de que precisávamos sensibilizar o juiz da 2º Vara Infracional, à época, sobre a política de atenção à saúde mental destinada ao segmento infanto-juvenil. Nesse momento inicial, foi possível esclarecer que a inclusão de adolescentes em tratamento deveria ser melhor discutido e analisado pelas equipes envolvidas do socioeducativo e CAPS ADOLESCER, pois a determinação era feita de forma a não considerar as especificidades do serviço e da demanda.
Assim, a identificação e o atendimento da demanda foram se desenvolvendo em conjunto, uma vez que muitos adolescentes não apresentavam o perfil da clientela do CAPS ADOLESCER, ou seja, com sofrimentos psíquicos ou prejuízos no seu desenvolvimento psíquico emocional decorrente do uso abusivo de álcool e outras drogas.
Antes desse período, não existia nenhuma referência conhecida e/ou articulada para encaminhamento desses adolescentes. Nas primeiras tentativas de inserção dos adolescentes na rede, foram estabelecidas condições por parte gestão do CAPS ADOLESCER para atender essa população, já que um fluxo não havia sido estabelecido e porque muitos procedimentos de segurança dificultavam o trabalho da equipe do CAPS ADOLESCER. Um exemplo, o uso de algemas, revistas, presença da escolta da Polícia Militar, cancelamentos de pautas de saída para o atendimento entre outras dificuldades.
Nesse sentido, foi necessário mais um diálogo com o Juizado da Infância e Juventude, equipes do CAPS ADOLESCER e da CATS, e equipe de referência dos adolescentes (psicólogo, assistente social e educador físico), com a finalidade de expor a rotina do trabalho, a segurança dos adolescentes e esclarecer sobre o perfil do usuário a ser atendido e de como fazer para inserir os adolescentes no atendimento do CAPS ADOLESCER. Muitos questionamentos surgiram sobre os procedimentos de segurança e de como isso poderia interferir no atendimento dos adolescentes no CAPS ADOLESCER. Como encaminhamento da reunião foi definido que a gestão do socioeducativo e as equipes de referência dos adolescentes fariam a sensibilização dos agentes de segurança do socioeducativo na condução dos adolescentes em Acolhimento e Terapêutica.
Foi elaborado e pactuado um Termo de Orientações Técnicas, normativas, administrativas e de Procedimentos que contemplava desde informações quanto à utilização do uso de algemas até ao comportamento adequado do adolescente. Os servidores mais resistentes ao trabalho (agentes socioeducativos e policiais militares) foram incluídos nas discussões e pactuações, e com isso foram diminuídas as resistências.
Em seguida, foi realizado o diagnóstico situacional que favoreceu a concretização do trabalho em conjunto, possibilitando o alinhamento das estratégias de trabalho. Com isso, foi possível identificar que muitos adolescentes antes da medida de privação de liberdade não haviam sido assistidos em nenhum nível de cuidado em saúde até aquele momento.
Na troca de experiências entre as equipes, foi possível conhecer a rotina e demandas de ambos os serviços. Verificamos que em alguns casos o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa já havia sido acolhido em algum momento no CAPS ADOLESCER. Outra característica observada foi que nos atendimentos dos adolescentes do socioeducativo o procedimento de segurança implicava na readequação das rotinas, visto que o CAPS ADOLESCER é um serviço aberto que busca superar todas as barreiras de acesso.
A interação das equipes envolvidas proporcionou um fortalecimento do vínculo entre os profissionais de ambos os serviços. Sendo que esta estratégia de cuidado permitiu constantemente avaliar, refletir e realizar ações interesetoriais em que atores se complementam e se enriquecem no conhecimento e na prática.
Para início dos atendimentos dos adolescentes no CAPS ADOLESCER, a equipe da saúde do CASE, juntamente com a equipe de referência dos adolescentes, reunia-se em estudo de caso preliminar visando à identificação de adolescentes que utilizavam algum tipo de substância psicoativa. Uma vez selecionado pelas equipes do socioeducativo, o jovem recebia toda informação sobre o tratamento que seria ofertado e a necessidade de desejar receber o atendimento proposto. Na sequência, os casos com aceitação do adolescente eram encaminhados ao CAPS ADOLESCER para estudo ampliado envolvendo todas as equipes. Nesse momento, eram definidos os adolescentes que seriam acolhidos e passariam a frequentar o CAPS ADOLESCER.
As atividades desenvolvidas com os adolescentes no CAPS ADOLESCER foram acolhimento, atendimento individual e em grupo, oficinas terapêuticas e eventos festivos, dentre outras. Consideramos um marco de atuação de todos os envolvidos neste processo, pois foram muitas as tentativas iniciadas na história do socioeducativo de Cuiabá com a rede de saúde e saúde mental no intuito de estreitar a parceria.
Caminhando assim, de maneira coletiva, solidária, articulada, respeitando as particularidades, numa perspectiva interdisciplinar e intersetorial, é que se fortaleceu a parceria entre o CAPS ADOLESCER e o Socioeducativo. Todos os profissionais (enfermeiros, farmacêuticos, assistentes sociais, psicólogos, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, educadores físicos, técnicos de enfermagem e artesões) e equipe de segurança envolvidos conseguiram equilibrar e desenhar o fluxo de atendimento no CAPS ADOLESCER, e dessa forma estabeleceu-se o trabalho que até hoje se desenvolve na busca de garantia do direito à saúde mental para adolescentes privados de liberdade no CASE Cuiabá.
O projeto proporcionou o atendimento de 30 adolescentes do socioeducativo até o momento. Observamos uma melhoria do quadro inicial de saúde dos adolescentes, fortalecimento do vínculo familiar, estabelecimento de vínculo do adolescente com os serviços de saúde, compreensão do adolescente enquanto sujeito de direitos e protagonismo em suas decisões em relação ao tratamento e, também, o trabalho intersetorial como fortalecimento da rede de atendimento em saúde mental.
Os marcos legais que nos orientaram na busca da efetivação do direito à saúde da criança e adolescente, em especial na saúde mental dos adolescentes privados de liberdade, estão referenciados: no Sistema Único de Saúde (SUS); no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA Lei nº 8.069/1990); na Lei da Saúde Mental (Lei nº 10.216/2001); no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (Lei nº 12.594//2012); na Política sobre Drogas no âmbito do SUS; e na Política Nacional de Atendimento Integral a Saúde do Adolescente em Regime de Internação (PNAISARI).
Um exemplo do trabalho intersetorial entre o Socioeducativo e CAPS ADOLESCER
Cláudio é filho único, não conheceu seu pai biológico, e o pai adotivo o registrou quando tinha 4 anos de idade. O adolescente, quando entrou no CASE, tinha parado de estudar no 9° Ano do Ensino Fundamental, não teve nenhuma experiência laboral e fazia uso de substâncias psicoativas (SPA). Segundo a genitora, ele era tranquilo, cordial com as pessoas, frequentava a escola, mas o comportamento dele mudou com o falecimento do pai, que teve uma influência positiva em sua vida. Ele passou a ficar agressivo, mais retraído e teria intensificado o uso de substância psicoativa (maconha, cocaína e bebida alcoólica) e passava a maior parte do tempo fora de casa.
Quando o adolescente foi apreendido, a mãe relatou que o filho estava há mais de seis meses sem dar notícias. Foi quando ela soube do relacionamento estável dele com uma mulher maior de idade (14 anos mais velha), também usuária de substância psicoativa e que também tinha sido denunciada pelo envolvimento no delito e condenada há 25 anos de reclusão.
No período de sua internação, desde a passagem pela Internação Provisória, o adolescente enfrentou muitas situações delicadas motivadas por boatos divulgado em programa sensacionalista de TV. Como consequência, era comum o adolescente sofrer atentados a sua integridade física, sendo mantido “na tranca” a maior parte do tempo, para sua própria segurança.
Ele se envolveu em uma série de ocorrências devido ao seu quadro de instabilidade psíquica. Em uma dessas ocorrências, o adolescente ateou fogo ao colchão de seu quarto, o que ocasionou queimaduras em seu corpo de 2° e 3° graus, sendo internado por três semanas no Pronto Socorro de Cuiabá para receber tratamento. Foram inúmeras as ocorrências para atendimento nas UPA’s em decorrência dos cortes que o adolescente fazia em seu próprio corpo. Devido a tensão que essas situações causavam, a Unidade não dispunha de espaço para atender a certas especificidades.
O adolescente ficava isolado em local de pouco espaço, piorando o seu quadro já instável. Nem mesmo os reiterados pedidos por parte da sua equipe de referência para que ele fosse transferido provisoriamente para a enfermaria da Unidade de Saúde até que o seu estado emocional fosse restabelecido eram atendidos, pois a justificativa dada era que o espaço da enfermaria não era adequado para a finalidade do cumprimento da medida.
Devido à falta de estrutura do CASE, até mesmo de uma equipe especializada no cuidado em saúde, e na condição de privação de liberdade, foi que se intensificou a necessidade do trabalho intersetorial entre o Socioeducativo e CAPS ADOLESCER. Após muitas tratativas, o adolescente e sua genitora passaram a receber atendimento psicossocial com equipe multidisciplinar (enfermeira, médico psiquiatra, psicóloga e assistente social, artesã entre outros) no CAPS ADOLESCER. Atendendo assim o projeto terapêutico singular estabelecido para o caso.
Diante do resultado positivo, a sentença, à época, foi pela desinternação condicionada à continuidade do atendimento no CAPS ADOLESCER. O caso desse adolescente não era apenas uma questão de justiça, mas também de saúde. O adolescente ficou internado por quase dois anos no CASE.
Desse modo, foi feita uma articulação com a equipe do CAPS ADOLESCER com o CAPS da cidade de Poconé (100 km de Cuiabá) e o socioeducativo para a continuidade do atendimento do adolescente. Ele aderiu por um período, mas acabou desistindo e voltou a fazer uso abusivo de substâncias psicoativas.
Em função do projeto, foi restabelecido o contato com o adolescente e com a mãe, e por conta dessa nova aproximação, o adolescente comunicou ao CAPS de Poconé que desejava tratamento sob internação em um serviço de saúde do SUS que atende pessoas do sexo masculino maiores de 18 anos para acompanhamento psicossocial com equipe multidisciplinar. A decisão foi muito bem recebida por todos (pela mãe; pelas equipes do CASE, do CAPS ADOLESCER e pela equipe do CAPS AD III de Poconé), pois não se tratou de uma ação compulsória. Ao final, o próprio adolescente quem decidiu pela adesão e escolheu o caminho do acolhimento.
Lição aprendida
Quando existe um envolvimento e compromisso dos serviços que atendem a criança e adolescente, estratégias simples de cuidado podem repercutir de maneira positiva na vida dos sujeitos envolvidos.
Saiba mais em https://apsredes.org/3a-edicao-jovens-e-adolescentes/