Mulheres trabalhadoras do sexo, mulheres em regime de privação de liberdade, mulheres quilombolas, mulheres contra a violência obstétrica, mulheres por um pré-natal de qualidade com respeito a diversidade cultural, mulheres transgêneros e vítimas da injustiça social. Esse foi o universo de mulheres que ganharam visibilidade com as seis experiências premiadas no encerramento da 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, realizada neste domingo (20), em Brasília, onde reuniu mais de 1.800 mulheres provenientes de 26 estados e do Distrito Federal. As práticas inovadoras foram selecionadas por meio da estratégia desenvolvida pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), chamada de Laboratório de Inovação, realizada em parceria com o Conselho Nacional de Saúde.
“Das 22 experiências inscritas no Laboratório, essas seis finalistas refletem a
potencialidade do sistema de saúde, do SUS, de oferecer uma atenção de qualidade”, afirmou a representante da OPAS no evento, Mônica Padilha, durante a entrega dos certificados de premiação. “Foi interessante mostrar para o Brasil essas seis experiências exitosas, algumas de locais pequenos e de regiões com maior desigualdade, provenientes do Norte e do Nordeste, que servem de exemplo para outros locais, pois são experiências que garantem a melhoria na qualidade de vida e na saúde das mulheres”, afirmou a coordenadora da Conferência, Carmen Lúcia Luiz.
Liliane Moura Barbosa, moradora de Capoeiras, comunidade de quilombolas localizada no município de Macaíba, no Rio Grande do Norte, é uma das oito mulheres grávidas atendidas atualmente pelo Projeto Barriguda e participou, em Brasília, da premiação acompanhando o coordenador do projeto, o médico Reginaldo Antônio de Oliveira Freitas Junior. “Eu agora como usuária do projeto digo que mais do que o projeto ter nos abraçado, foi a gente que o abraçou, pois foi um dos únicos projetos construído junto com a comunidade. Todas as crianças que foram recebidas pelo projeto são crianças saudáveis, a gente não tem nenhum caso de mortalidade, como existia antes do projeto devido o pré-natal, na época, ser muito precário. Antes, as seis consultas necessárias durante a gestação não aconteciam, as vezes o médico não ia, faltava, mas agora não. A gente tem a certeza de que na data em que a gente vai fazer o pré-natal, nós saímos da consulta com a data da volta. É muita parceria, para além de usuário e profissional, não é aquela coisa fria de consultório, vai muito para além disso”, conta emocionada Liliane Barbosa.
“É emocionante você encontrar com outras pessoas que fazem coisas diferentes, mas com mesmo o propósito que é pensar na saúde da mulher e na saúde integral. Isso motiva muito a gente ao saber que a gente não é um pontinho isolado, trabalhando por um SUS melhor, por uma saúde que considere a integralidade”, reflete a psicóloga Ellen Aragão, representante do Projeto Mulheres da AP2.2, que tem o artesanato como ferramenta de cuidado para mulheres em tratamento de saúde mental, desenvolvido em sete de unidades básicas de saúde da Grande Tijuca, bairro do Rio de Janeiro. “Como resultado deste trabalho, a gente vê mulheres com melhores índices de saúde geral, menos uso de medicamentos, com uma rede de apoio consolidada, retornando para o mercado de trabalho, mulheres encontrando outras atividades de geração de renda por meio do artesanato. Isso tudo é muito bom, demora um tempo para acontecer, mas quando a gente vê os resultados a gente fica muito feliz”, comemora a psicóloga.
O Projeto TranformaDOR, também premiado pela OPAS e CNS, atendeu, em 2016, 430 pessoas na Unidade Básica de Saúde de Pratinha, região da periferia de Belém e grávidas da Universidade Federal do Pará (UFPA). O projeto trabalha o conceito de violência obstétrica como toda forma de violência praticada pela mulher na gravidez, no parto, no pós-parto e em situação de abortamento. Segundo dados da Fundação Perdeu Abramo, uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica no Brasil. Para a coordenadora da experiência, a professora da UFPA Edna Barreto, participar da 2ª Conferência é um marco histórico tanto para o SUS quanto para o Projeto. “Participar de um momento histórico como este em que estamos tratando da saúde das mulheres como Direito de Cidadania em um momento também de incerteza para a própria política de saúde para as mulheres, é uma grande oportunidade, especialmente por compartilhar uma experiencia que tem a potência de trabalhar com as mulheres para reverter uma desigualdade de gênero que é a violência obstétrica”, reflete Barreto.
A apresentação da experiência do Ambulatório Trans, de Lagarto, em Sergipe, realizado por Rodrigo Dornelas, deu visibilidade a situação de vulnerabilidade que vive a população transgênero no Brasil. “Diante de dados alarmantes como a baixa expectativa de vida da população transgênero de apenas 35 anos, de que 90% dessa população está envolvida com a prostituição para sobreviver, nós montamos o Ambulatório Trans, em Lagarto, que vai além do preconizado pela portaria do SUS. Hoje a gente tem 70 pessoas sendo atendidas no ambulatório que oferece o cuidado integral na atenção à saúde desses usuários. A gente segue a portaria do Ministério da Saúde, mas oferecemos muito mais, a gente trabalha com mais profissionais para atender as necessidades dessa população, temos nutricionista, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, e todos na perspectiva da despatologização das identidades Trans. A gente acolhe as pessoas de acordo com as suas necessidades em saúde”, explica o diferencial do serviço.
Maria do Perpetuo Socorro Godinho Rocha recebeu o certificado do Laboratório de Inovação pelo Projeto Passo a Pássaro, idealizado pela Secretaria de Justiça do Piauí e a Coordenadoria Estadual de Enfrentamento às Drogas, desenvolvido na Penitenciária Feminina de Teresina, que tem como foco a execução de atividades voltadas à reabilitação de dependentes químicos no sistema prisional do Piauí. “Participar desta Conferência tem para mim a sensação de estar rompendo com uma barreira tão gigante que existe, que torna essas pessoas invisíveis, privadas não só de liberdade de ir e vir, mas também privadas de liberdade de direitos, de afetos, de saúde, de qualidade de vida, de tudo. E ainda são estigmatizadas de uma forma cruel, às vezes. Não estou tentando justificar o que as levaram até lá, que caminhos que traçaram, mas eu costumo dizer que o maior problema de saúde dessas pessoas é a desigualdade social. Essa é a doença dessas pessoas. Essa é a doença que precisa ser tratada. Imagine, você sofrer tudo isso e ainda está privado de usufruir dos seus direitos. Então qualquer voz que se levante, qualquer projeto que dê visibilidade para mim nessa área é muito significativo. Eu vim representando um trabalho nesse sentido do Estado do Piauí tem um significado muito forte pra mim”, conta Maria do Perpétuo Rocha.
A aluna de psicologia da Universidade Federal do Estado do Ceará, Juliana Pinho, representou o Núcleo de Estudos sobre Drogas (Nuced), que articula instituições e fomenta novas abordagens de cuidado na comunidade da periferia de Fortaleza que concentra trabalhadoras do sexo. O projeto Práticas de Cuidado em Saúde com Trabalhadoras do Sexo: Extensão Universitária Desenvolvida pelo Nuced/Universidade Federal do Ceará (UFC) potencializa ações de saúde no território, integrando as atividades já realizadas por instituições do município, como o Instituto de Cultura, Arte, Ciência e Esporte – CUCA e o Posto de Saúde Lineu Jucá, e amplia o cuidado em saúde às profissionais do sexo. “Infelizmente o preconceito ainda é muito grande com as mulheres trabalhadoras do sexo, inclusive nos serviços de saúde. Nós perdemos recentemente uma usuária do SUS que não teve o diagnóstico de pancreatite a tempo, percorreu diversas UPA, e sem diagnóstico veio a falecer. Isso nos motiva ainda mais a continuar o trabalho e mostra que o projeto precisa ter sustentabilidade”, defende Juliana Pinho.
Para Carmen Lúcia Luiz, coordenadora da Conferência, o desafio do SUS ao chegar aos seus 30 anos é “incorporar a diversidade das mulheres porque se você não incorpora, não entende que as mulheres são plurais, não consegue perceber onde as diferenças se tornam desigualdades e não conseguiremos superar as desigualdades para alcançar a equidade. Esse é o primeiro desafio, perceber e incorporar as diversidade das mulheres”, aponta.
Além da apresentação na 2a Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, as experiências serão sistematizadas e divulgadas em livro de autoria da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e do Conselho Nacional de Saúde, organizado pela equipe de pesquisadores da ENSP/ Fiocruz, sob a coordenação da Dra. Jeni Vaitsman.
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Texto e fotos – Vanessa Borges