APSREDES

Prescrição por enfermeira(o) em tempos de Coronavirus: pode? Deve!

Parece que a moda de dar um passo à frente e dois para trás pegou pra valer no Brasil. No Planalto isso acontece quase todo dia, é bem verdade que com preferência pelos passos em pujante marcha a ré. Aqui no DF a Secretaria de Saúde baixou portaria em janeiro pp. permitindo que as enfermeiras (e seus colegas masculinos) pudessem prescrever alguns medicamentos nas unidades de saúde – um avanço, sem dúvida. Um mês depois, todavia, mudou de ideia intempestivamente e revogou o dispositivo, alegando a necessidade de fazer estudos mais aprofundados. Tudo bem, mas seria de se esperar que tais estudos (seriam realmente complexos e herméticos?) já tivessem sido executados quando da publicação da portaria em janeiro. Mas tal não foi o caso. E no resto do mundo, dito civilizado, como acontece? No Reino Unido, Estados Unidos e Canadá, por exemplo, isso já é um dever de tais profissionais, que ficam assim mais gabaritados a assistir de forma plena os pacientes. Organismos internacionais como a OMS e seu ramo para as Américas, a OPAS, têm defendido uma “prática avançada da enfermagem”, na qual estão previstas as prescrições de exames e de medicamentos. Em tempos pandêmicos (não só em relação a virus, mas também nas besteiras perpetradas pelas autoridades, tal discussão passa a ser essencial!

A literatura internacional sobre profissões de saúde aponta a enfermagem como a profissão do século XXI que mais tende a se desenvolver. Há países que levam isso a sério, muitas vezes os que já têm melhores indicadores de saúde. Ao contrário, nos países em desenvolvimento, como os da América Latina em geral e no Brasil, as mudanças andam a passos de cágado. E todo mundo sabe que transformação do cuidado de enfermagem é uma condição sine qua non para avanço da profissão e de sua contribuição nas melhorias da qualidade dos serviços de saúde. Em um futuro próximo, a ampliação do papel de enfermeiras e enfermeiros, mediante formação e regulamentação adequadas, certamente ocorrerá em favor da ampliação do acesso e da qualidade em saúde. E tal formação de nível avançado, logicamente, incluirá habilidades e conhecimentos científicos baseados em evidências, voltados para a promoção da saúde, a prevenção e o controle adequados de doenças.

Este novo quadro de práticas de enfermagem está fortemente associado a uma delegação de tarefas (task shifting), que permitiria reorganizar a força de trabalho e aumentar a eficiência no uso dos recursos humanos, perfeitamente adequada ao atual contexto de escassez de profissionais da saúde. Tal iniciativa, aliás, já é efetiva e testada amplamente em serviços de variados países, com a enfermagem exercendo, de fato, algumas tarefas anteriormente atribuídas apenas aos médicos, principalmente na atenção primária à saúde. Em outras palavras, em atividades que incluem o diagnóstico e o tratamento baseados em um modelo de assistência preventivo, de promoção, holístico e centrado no paciente. Isso é particularmente significativo em locais distantes e nas periferias dos grandes centros.

Conceito associado é o de skil mix, que representa combinação, substituição e diversificação de habilidades, com objetivos de aumentar a eficiência, melhorar os resultados e reduzir custos. A diversificação consiste em introduzir novos grupos profissionais para ampliar o leque de habilidades que podem ser fornecidas, não ocorrendo intenção de substituir ou sobrepor nenhum profissional. Em termos de custos da assistência, esses novos papéis da enfermagem implicam na sua redução ou neutralização do crescimento.

A experiência internacional também demonstra que a ampliação do papel das enfermeiras no primeiro nível de atenção em saúde não substitui quaisquer outros profissionais de saúde; pelo contrário, pretende complementá-los, além de contribuir para que a população conte com o acesso e a cobertura de serviços de saúde mais qualificados. No entanto, e paradoxalmente, os países economicamente mais desenvolvidos no mundo e que contam com a maior relação médicos por habitantes são os que incorporaram tais inovações.

De há muito se sabe que a enfermagem representa uma profissão de grande impacto não só no processo de cuidar, mas também de levantar necessidades e atendê-las à luz dos determinantes sociais do processo saúde-doença. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) 60% da força de trabalho em saúde é composta pelo pessoal de enfermagem, havendo cerca de 20 milhões de enfermeiros distribuídos no mundo, um quarto deles na Região das Américas. Entretanto, na América Latina, há 15 enfermeiros para cada 10.000 pessoas, quando o esperado seria pelo menos 23 profissionais para tal contingente, subsistindo aí questões políticas, ideológicas e culturais.

Soma-se à escassez desses profissionais, a falta de incentivos e capacitação para que desenvolvam o cuidado em saúde de forma holística e integral, com políticas corporativas que tendem a inibir ou prejudicar o exercício da enfermagem. Assim, dentre as questões mais emblemáticas estão a prescrição de medicamentos e a solicitação de exames, práticas importantes e comuns na Atenção Primária à Saúde (APS), para as quais a categoria médica não poupa esforços em desestimular ou inibir.

Segundo Nascimento e colaboradores (2018, ver link), no Brasil, ao se considerar as conjunturas normativa, jurídica e ética que instruem a profissão, já há alguns avanços relativos à prescrição de medicamentos e solicitação de exames. Entretanto, isso não tem impedido que o cuidado em saúde realizado pelo enfermeiro, em termos de prescrições, por exemplo, ainda carece de aceitação e legitimidade. Neste aspecto, a defesa feita pelas entidades representativas da enfermagem procura superar o corporativismo tradicional, remetendo à defesa da autonomia profissional, não devendo ser interpretada como ameaça a outras categorias.

Atualmente se constata, em todo o mundo, um déficit de enfermeiras nos sistemas de saúde, em virtude de o mercado de trabalho não favorecer essas profissionais. Na maioria dos serviços, o cuidado prestado pela enfermagem é feito por auxiliares e, em menor número, por técnicos de enfermagem. Impõe-se assim uma enfermagem de prática avançada, na nomenclatura dos organismos internacionais, para preencher as lacunas dos sistemas e dos serviços de saúde em termos de pessoal, o que implica na redesignação de tarefas e na combinação de habilidades na força de trabalho da saúde. Pelo potencial de contribuir com a atenção integral ao usuário, a prescrição de medicamentos por parte de enfermeira(o)s na atenção primária à saúde representa um importante elemento de tal prática avançada, na própria transformação da essência do cuidado em equipes de saúde.

É de se esperar que Suas Excelências, os gestores da Saúde no DF, interrompam sua marcha ziguezagueante de caranguejos e de fato impulsionem (para a frente…) iniciativas como a da liberação de determinadas prescrições pela Enfermagem.

Na verdadeira enchente de casos que acorrerão aos serviços de saúde, em seus diversos níveis, por força da pandemia atual, não adianta ficar discutindo se tais pessoas deveriam estar ali ou terem ficado em casa. É urgente desenvolver a capacidade resolutiva do sistema e, para tanto, a enfermagem tem  papel essencial!

[quote style=’1′ cite=”]Flavio Goulart, o autor, é professor universitário aposentado (Universidade de Brasília) e foi Secretário Municipal de Saúde em Uberlândia-MG em duas ocasiões, além de ter sido membro (vice-presidente) da primeira diretoria do Conasems, colaborador do Portal da Inovação na Gestão do SUS e autor do Blog SaúdenoDF.[/quote]

Saiba mais:

 

 

Fonte: saudenodfblog

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe