A Equipe de Saúde da Família que atende a comunidade do Salgueiro, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, observou o alto número de encaminhamentos de alunos da escola local por alterações de comportamento no ambiente escolar, a maioria antecipando diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Surgiu aí, para a ESF, a necessidade de avaliar não só as crianças encaminhadas, mas também os contextos familiar e social em que estavam inseridas. No caso, a comunidade do Salgueiro, área de alta vulnerabilidade social.
Com uma estratégia de articulação intersetorial, a ESF trabalhou em conjunto com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) da região e também com os docentes da Escola Bombeiro Geraldo Dias, com a qual a ESF já desenvolvia ações no âmbito do Programa Saúde na Escola, que prevê a atuação integrada da Saúde e da Educação na promoção da saúde de alunos da rede pública de ensino. O trabalho contou com apoio de comerciantes locais e instituições como a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, bem como o Conselho Tutelar.
Foi criado o “Grupo das Crianças”, com encontros na própria escola, com duração média de 45 minutos, em que os profissionais da ESF conduzem o grupo a partir de metodologias e dinâmicas previamente definidas, a fim de facilitar atividades em que as crianças possam demonstrar aquisições e atrasos no desenvolvimento infantil.
Realizados preferencialmente pela manhã, período em que as crianças estão mais calmas e menos dispersas, os encontros envolvem brincadeiras como forca, mímica, rodas, construção do próprio brinquedo, dança e ritmos ao som do violão etc. Sempre estimulando a comunicação, o diálogo, ensinando limites, valorizando o ato de brincar, validando atitudes consideradas positivas e negativas sem utilizar a agressividade, priorizando o acolhimento. O objetivo era oferecer um cuidado diferente do habitual.
Paralelamente, os pais foram convidados para um outro grupo, chamado “Paz e filhos”, buscando desenvolver culturas de saúde e paz, e para discussão sobre cuidados com os filhos e feedback sobre o comportamento das crianças a partir da participação no grupo.
Como resultado do trabalho, as crianças assistidas reconhecem no grupo um lugar privilegiado, expressam sorrisos e alegria nos encontros. Foi valorizada a aproximação entre família, escola e saúde. Foi pactuada a escuta e a atenção para com as crianças, tanto pela escola como pela família. A ESF Salgueiro conheceu melhor o seu território de atuação conhecendo famílias adoecidas que ainda não reconheciam o centro de saúde como uma rede de cuidado. A experiência da ESF Salgueiro diagnosticou a prevalência alta de violência contra crianças (maus tratos) que gera stress nas crianças, recomendando que os diagnósticos psiquiátricos devem ser cuidadosamente elaborados por equipes competentes para evitar o risco de consequência a medicalização e patologização da infância.
O diagnóstico abrangente sobre como a violência afeta a neurofisiologia das crianças foi um divisor de águas neste cuidado. O desenvolvimento de afeto entre os participantes dissolve o contexto violento, é terapêutico e gera maior empatia dos médicos para com a população. A atividade vem sendo desenvolvida desde março de 2017.
Criação de um grupo de crianças pela Equipe de Saúde da Família Salgueiro em uma escola do território adscrito. O objetivo do grupo foi conhecer melhor as crianças consideradas com alteração de comportamento pela escola, a partir da percepção do alto número de encaminhamentos da Escola para a Clínica da Família com descrição de “problemas escolares”. Estes induzem diagnósticos precipitados pelos médicos, uma vez que desconsideram a realidade social em que estas crianças estão inseridas.
Equipe de Saúde da Família do Município do Rio de Janeiro, da área do Salgueiro
O diagnóstico comunitário prévio, aliado â experiência do trabalho na ESF Salgueiro permitiu conhecer em detalhes o território, favela conhecida por Salgueiro na cidade do Rio de Janeiro, área de alta vulnerabilidade social.
O processo de ocupação desta região inicia-se ainda no século XIX, com ex-escravos da fazenda de um produtor cafeeiro na região. Na década de 1940 intensifica-se a migração de pessoas do interior do estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e do Nordeste, para a comunidade, o que contribuiu bastante para a identidade cultural atual do Salgueiro. Este morro é marcado pela diversidade religiosa, musical e gastronômica. Entre as celebrações que mobilizam mais pessoas destacam-se a festa católica, mas também sincrética negra, de São Sebastião, o envolvimento com o carnaval da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, os bailes de funk. Como quase todo morro carioca, as pessoas vivem atualmente o karma da violência nas favelas, dominadas pelo poder paralelo do tráfico, assoldas por guerras entre facções e policiais, o que promove morte e prisão de jovens envolvidos, adoecimento da população ansiosa com a possibilidade de ser atingida por uma bala de revolver. Além disso, outros tipos de violência se destacam, como a estrutural, quando o estado não garante equipamentos urbanos mínimos para qualidade de vida, a saber: coleta de lixo, saneamento básico, transporte, distribuição de água. A violência contra mulheres e crianças, reproduzida entre as gerações de famílias que tentam sobreviver a tantas formas de exclusão. Ainda com muitos problemas é frequente o orgulho de haver no morro uma população solidária entre si, alegre e resistente.
A escola Bombeiro Geraldo Dias é responsabilidade da ESF Salgueiro pelo Programa Saúde na Escola. É a única escola dentro do Salgueiro, se localiza na entrada da comunidade e possui professores que nunca subiram o morro, embora perante os problemas escolares possam imaginar o que se passa no período que as crianças voltam para casa. A escola tem boa estrutura, oferece boa qualidade de alfabetização e refeições para os alunos. Além da escola, a comunidade conta com apoio da creche municipal, associação de moradores, organizações não governamentais e seus projetos sociais, líderes comunitários e empresários da região como a padaria Caliel, promotora de cultura local, duas quadras esportivas, horta comunitária, biblioteca, igrejas, UPP (unidade policial). Nos arredores da comunidade, escolas, clubes, Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), Conselho Tutelar, Centro de Saúde, UPA, quadra da escola de Samba, etc. A ESF Salgueiro reconhece estes parceiros bem como a potencialidade do trabalho intersetorial.
Como dito, a Equipe de Saúde da Família Salgueiro é responsável pela Escola Bombeiro Geraldo Dias pelo Programa Saúde na Escola (instituído nacionalmente por Decreto Presidencial nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007 – que resulta do trabalho integrado entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, na perspectiva de ampliar as ações específicas de saúde aos alunos da rede pública de ensino).
Observando a grande quantidade de encaminhamentos de crianças da Escola para a Clínica da Família (onde a ESF Salgueiro atua), pouco detalhados, afirmando dificuldades escolares e suspeita de doenças, foi necessário aproximação com a escola para compreender a alta incidência de queixas de alterações de comportamento infantil. A maioria dos encaminhamentos da escola recebidos pela ESF Salgueiro relatavam agitação, agressividade, antecipavam o diagnóstico de transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), com poucos detalhes e sugerindo condutas sem evidência científica justificada. Em muitas ocasiões as crianças não estavam agitadas ou não demonstravam alterações clínicas ou suspeitas de adoecimento durante a consulta ambulatorial, o que confundia a avaliação do Médico de Família e Comunidade e disparava a necessidade de conhecer mais amplamente a realidade das crianças, dos cuidadores e suas queixas.
A saúde mental dos alunos tem sido cada vez mais apontada como problema importante a ser enfrentado socialmente, contudo não há um plano de enfrentamento elaborado para o acesso a saúde na Atenção Primária. O Grupo de Crianças se justificou no sentido de ampliar este acesso.
6/03/2017- 28/02/2019, segue ocorrendo.
Durante reuniões de rede intersetorial (Escola, Saúde, Assistência Social, Conselho Tutelar), entre as discussões de casos e a procura por soluções, o Grupo de Crianças (GC) foi planejado segundo uma planilha de diagnóstico, ação e responsáveis, orientado pela capacidade dos profissionais em organizar e executar projetos. Assim, à medida que o grupo acontecia o planejamento era revisto conforme avaliações periódicas.
Os encontros com as crianças são realizados na própria escola com as crianças ditas “problema“ segundo a visão de pais e educadores, por elas estarem envolvidas em indisciplinas. O GC tem duração média de 45 minutos e se divide em dois ou três momentos, pois as crianças têm dificuldade de manter concentração em uma atividade única por mais de15 minutos. Os médicos da equipe Salgueiro conduzem o grupo a partir de metodologias e dinâmicas previamente definidas, a fim de facilitar atividades em que as crianças possam demonstrar aquisições e atrasos no desenvolvimento infantil, ou seja, que se sintam livres para manifestar o que quiserem, até mesmo a timidez ou receio de liberdade para correr e gritar, por exemplo, cerceado por regras escolares ou familiares.
Em muitos momentos os monitores se pegavam sem saber o que fazer diante de agressividade exagerada, bagunça e ineficácia de palavras de ordem. A bagunça é utilizada pelas crianças como enfrentamento da angústia que não é possível expressar. As brincadeiras perigosas seriam uma forma de materializar os temores que habitam a si mesmas. Dessa forma, havia um grande questionamento de difícil resposta: o que estas crianças gostariam de comunicar e como facilitar este processo? Nos grupos seguintes, preferencialmente no início da manhã, horário em que as crianças são mais calmas e menos dispersas, foram trazidas brincadeiras como: forca, mímica, rodas, construção do próprio brinquedo, dança e ritmos ao som do violão, etc. Sempre estimulando a comunicação, o diálogo, ensinando limites, valorizando o ato de brincar, validando atitudes consideradas positivas e negativas sem utilizar a agressividade, priorizando o acolhimento, mesmo que muitas vezes os monitores estivessem inclinados a medidas punitivas. O objetivo era oferecer um cuidado diferente do habitual. As crianças estavam acostumadas com disciplinadores e pais ‘bravos’, dos quais tinham medo, se sentimento desestimulado no grupo.
Os pais são convidados em outro grupo da ESF Salgueiro, chamado ‘Paz e filhos’, no qual busca-se promover culturas de saúde e paz, discute-se cuidados com os filhos, dentre outros temas de interesse, onde é oportunizado espaço para explicação e feedback sobre os grupos realizados com as crianças.
O diagnóstico abrangente sobre como a violência afeta a neurofisiologia das crianças foi um divisor de águas neste cuidado. O desenvolvimento de afeto entre os participantes dissolve o contexto violento, é terapêutico e gera maior empatia dos médicos para com a população. Assim, o grupo com as crianças disparou estratégias de cuidado com o público infantil da ESF Salgueiro e uma série de ressignificações sobre o cuidar da saúde na escola e no território.
Os recursos necessários para aplicação do projeto já estão garantidos pela Estratégia de Saúde da Família e a política do PSE. É preciso considerar que a capacitação no desenvolvimento do PSE e para realização de grupos diversos, bem como desenvolvimento de competência avançada em saúde da criança, está incluída na formação do Médico de Família e Comunidade. Considerando que a Residência Médica treina o médico para estas atividades, os recursos destinados para a formação com excelência do profissional padrão-ouro para Atenção Primária também se incluem na elaboração deste projeto, que foi dirigido por Médicos de Família e Comunidade e Residentes da especialidade.
Não houve gastos extras para realização do projeto.
As crianças com dificuldades escolares e comportamento agressivo, reconhecem no grupo um lugar privilegiado, criaram vínculos reconhecendo os organizadores do grupo pelo nome, expressam com sorrisos e alegria a chamada para participar dos encontros.
Foi valorizado a aproximação entre família, escola e saúde, dentre outros fatores pela oportunidade de provocar mudanças nas formas de se relacionar com as crianças. Assim como foi frisado no grupo, sugeriu-se sempre que possível melhora da comunicação e da escuta com alunos e filhos, ao mesmo tempo diminuindo broncas repetitivas inócuas. Embora esta atitude pareça ingênua e obvia, não era executada com frequência pelos cuidadores (pais, professores, avós, etc) os quais estavam frequentemente sobrecarregados ou atribulados por diversas situações em seus cotidiano, a saber: violências, desemprego, conflitos familiares, crise política, cuidador único sem apoio, profissionais em burnout, etc. . A atitude de escutar com mais atenção às crianças foi considerada grande responsável por mudanças comportamentais e nos sintomas de algumas crianças após estas intervenções, durante o seguimento longitudinal dos grupos. Os resultados não foram lineares, nem reproduzíveis igualmente em todas as crianças, mas sempre havia mudanças e algum feedback positivo da criança ou da família, como a fala de que algo havia sido modificado em casa e que era necessário.
Outro resultado importante deste grupo foi aproximação da Saúde com a Escola e as famílias de alunos em dificuldades, o que oportuniza o cuidado de várias famílias, amplia o acesso â saúde e ajuda a aperfeiçoar o diagnóstico comunitário. Por exemplo, através do diagnóstico de problemas em crianças a ESF Salgueiro conheceu famílias adoecidas que ainda não reconheciam o Centro de Saúde como rede de cuidado. Da mesma forma, outras crianças com problemas escolares já eram conhecidas e contempladas em Planos Terapêuticos Singulares pela mesma equipe.
A experiência da ESF Salgueiro diagnosticou a prevalência alta de violência contra crianças e a literatura médica relaciona maus tratos com ativação de hormônios do stress, que por sua vez agem destrutivamente em áreas do cérebro de consolidação de memórias emocionais. Diagnósticos psiquiátricos devem ser realizados por profissionais competentes com extremo cuidado devido aos riscos de prescrições inadvertidas de psicotrópicos, como vem ocorrendo o chamado risco de medicalização e patologização da infância, onde os sintomas e comportamentos são tratados por algumas drogas em planos terapêuticos inconsistentes
Este estudo foi feito com a metodologia relato de experiência. Dentre os motivos para a dificuldade de se medir quantitativamente os resultados está o desenho deste estudo, em que se permite avaliações subjetivas. Avaliar grupos é uma tarefa dificultada pelas metodologias diferentes na comparação entre Grupos, dentre outros vários vieses. Dessa forma, foi previsto estas limitações neste relato da experiência, que tem por finalidade maior, aprimorar o Diagnóstico Comunitário e desenvolver atividade em grupo com a prerrogativas dos benefícios que Grupos Terapêuticos podem ter para as crianças. Os resultados apresentados têm caráter subjetivo. A próxima etapa deste projeto poderia ser aplicação de questionário que avalie a resposta dos envolvidos direta e indiretamente nesta experiência, a fim de buscar dados quantitativos para enriquecimento do trabalho. Porém, isto ainda não aconteceu, devido a mudança de profissionais na equipe, à qual deve ser capacitada para continuação do trabalho.
A experiência foi além do estabelecido na política do Programa de Saúde na Escola, propondo solução inovadora com integração intersetorial e uso de tecnologias leves, ressignificando o processo de trabalho da Equipe de Saúde da Família para ampliar o acesso e melhorar o cuidado de crianças com dificuldade escolar e comportamento agressivo, identificadas pela Escola.
O diagnóstico abrangente sobre como a violência afeta a neurofisiologia das crianças foi um divisor de águas neste cuidado. O desenvolvimento de afeto entre os participantes dissolve o contexto violento, é terapêutico e gera maior empatia dos médicos para com a população. Assim, o grupo com as crianças disparou estratégias de cuidado com o público infantil da ESF Salgueiro e uma série de ressignificações sobre o cuidar da saúde na escola e no território.
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