A alimentação é um direito indispensável para a sobrevivência humana. O direito à alimentação adequada é um direito humano básico, sem o qual não podem ser discutidos ou concretizados outros direitos, uma vez que sua realização é imprescindível para o direito à vida (TEO et. al., 2017).
O direito humano à alimentação adequada (DHAA) vem se construindo e consolidando ao longo do tempo, tendo origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento em que ficou estabelecido que “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação” (Organização das Nações Unidas, 1948, artigo 25, § 1º).
Posteriormente, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966, em vigência internacional desde 1976 e ratificado pelo Brasil em 1992 (Brasil, 1992), reafirmou esse conceito e acrescentou que todas as pessoas têm o direito “a uma melhoria contínua de suas condições de existência” (Organização das Nações Unidas, 1966, artigo 11, § 1º).
Em 1999, conforme consta no Comentário geral n. 12, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU definiu que o DHAA é realizado quando “cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção” (Organização das Nações Unidas, 1999, § 6º).
Esses tratados internacionais respaldam a ideia, corroborada no Marco estratégico global para a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN): consenso global, de que os estados signatários assumem obrigações no sentido de “respeitar, proteger e cumprir o DHAA mediante políticas globais, regionais e nacionais” (FAO, 2014, p. 6).
Reforça-se, assim, a ideia de que o direito de se alimentar regular e adequadamente não deve ser produto de benemerência, mas prioritariamente de uma obrigação que é exercida pelo Estado – representação da sociedade. E assim, o DHAA deve ser assegurado por meio de políticas públicas de SAN de responsabilidade do Estado e da sociedade, de maneira que a SAN seja conquistada na medida em que o DHAA seja progressivamente realizado (TEO et al, 2017).
No Brasil, esse direito é previsto pela Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional n° 64/2010, e embasado pela Lei n° 11.346/2006, conhecida como Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (SISAN). De acordo com esses dispositivos, cabe ao Estado assegurar que seus órgãos não violem esse direito; agir para que outros sujeitos, grupos ou entidades não interfiram na concretização desse direito; promover as condições para que todos possam se alimentar com dignidade; prover alimentos a indivíduos que não consigam obtê-los por conta própria (BRASIL, 2006; BRASIL, 2010). Assim, a realização do DHAA requer a adoção de políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição, acesso, consumo de alimentos seguros e de qualidade, promoção da saúde e da alimentação adequada e saudável em todos os níveis federativos (ABRANDH, 2013).
A SAN pode ser entendida como a “realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base em práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (BRASIL, 2006).
O termo segurança alimentar surgiu logo após a Iª. Guerra Mundial — percebeu-se que a superioridade dos países não dependia exclusivamente da sua capacidade bélica, mas também a garantia da auto suficiência alimentar da sua população. Segurança alimentar tornou-se um termo militar e foi intimamente associado à segurança nacional até a década de 1970 (MALUF, 2007).
Durante a Conferência Mundial da Alimentação promovida pela Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), o conceito voltou a ser associado à escassez de estoque de alimentos. Porém, em relação à capacidade de produção agrícola dos países. Entretanto, mesmo com a recuperação da produção que na época estava escassa, as mazelas da fome do mundo foram mantidas, atingindo gravemente uma grande parcela da população mundial (FAO, 2014).
A fome é uma das representações das injustiças sociais mais cruéis e sabemos que atinge de forma mais contundente setores historicamente marginalizados na sociedade. Em 2014, o Brasil celebrou a saída do Mapa da Fome elaborado pela FAO-ONU. Essa foi uma vitória da combinação entre políticas públicas, conselhos de segurança alimentar ativos e participativos nos diferentes níveis de governo e o esforço da sociedade civil brasileira na luta pelo direito humano à alimentação e nutrição. Sete anos depois, principalmente no período mais recente, vê-se o aumento do número de pessoas e famílias em situação de fome e o declínio da SAN no país, (FAO, 2020).
Enquanto os levantamentos relativos ao período de 2004 a 2013 registraram o aumento progressivo de famílias em SAN, este progresso foi revertido como mostram os dados coletados na Pesquisa de Orçamento Familiar- POF 2017-2018 (IBGE, 2020) e “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” (VIGISSAN, 2021). O advento da pandemia provocou queda ainda mais abrupta da SAN no país nos últimos dois anos, com aumento dos níveis de insegurança alimentar e nutricional (IAN) moderada ou grave cujos resultados atingem proporções atuais equivalentes às que vigoravam em 2004 (DAUFENBACK; COELHO; BÓGUS, 2021).
De fato, os impactos da pandemia do COVID 19, no Brasil explicitaram ainda mais a enorme discrepância entre diferentes realidades sociais que coexistem no país, reacendendo as discussões acerca da SAN, à semelhança do que vem acontecendo em outros países que enfrentam a mesma situação de pandemia. Do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de IAN e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome (VIGISSAN, 2021).
É alarmante que a situação de IA grave e fome tenham voltado aos patamares de 2004. Um desafio persistente, que parecia superado há alguns anos pelo resultado do acúmulo de políticas de longo prazo, retorna ao centro das preocupações sociais e do debate público. Neste sentido, é fundamental termos pesquisas atualizadas e confiáveis, alinhadas a metodologias consolidadas, que possam informar políticas e programas de combate à fome. Tal enfrentamento deve ainda estar acompanhado de perspectivas que incorporem princípios de uma alimentação saudável, justa e sustentável. O combate à fome não se fará dissociado de transformações dos sistemas alimentares no sentido da redução de impactos sobre as mudanças climáticas, do cuidado com a saúde das pessoas e da construção de relações sociais justas e equitativas (DAUFENBACK; COELHO; BÓGUS, 2021).
É urgente e imprescindível ações e políticas públicas efetivas que, respeitadas as restrições impostas pela crise sanitária que se agrava no Brasil, auxiliem os grupos populacionais mais vulnerabilizados e promovam a SAN, ao lado de políticas estruturais direcionadas à redução das desigualdades sociais e das iniquidades no nosso país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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