Trata-se, majoritariamente, de um público residente em áreas de extrema vulnerabilidade social e econômica, localizadas em bairros periféricos, com acesso limitado a serviços básicos de saúde, saneamento, educação e segurança.
Grande parte desses usuários enfrentam condições precárias de moradia, baixa escolaridade e insegurança alimentar e pessoas que já foram privadas de liberdade, o que agrava os riscos de adoecimento e dificulta a adesão a tratamentos de longo prazo, como é o caso da hanseníase. Além disso, o estigma social associado à doença contribui para o isolamento e para o sofrimento psicológico dessas pessoas, ampliando ainda mais sua exclusão social.
A atuação da equipe tem sido fundamental para promover o acesso humanizado à saúde, fortalecendo ações de diagnóstico precoce e tratamento adequado, além de oferecer suporte integral às famílias afetadas. A presença contínua do profissional de saúde nesse território tem contribuído significativamente para a redução das desigualdades e para a construção de vínculos de confiança com a comunidade, impactando positivamente os indicadores locais de saúde.
A população beneficiada pela atuação no âmbito do Programa Mais Médicos é composta por aproximadamente 400 pessoas, incluindo indivíduos acometidos pela hanseníase, bem como seus familiares e contatos próximos.
Apesar dos avanços e impactos positivos junto à população atendida, o trabalho enfrenta desafios estruturais e institucionais significativos que comprometem a continuidade e a efetividade das ações em saúde. Um dos principais entraves está relacionado à fragilidade do vínculo dos profissionais com o serviço, incluindo a própria médica matriciadora, cuja permanência está condicionada a contratos temporários e à instabilidade dos contextos políticos e administrativos locais. Essa rotatividade frequente dos profissionais dificulta a construção de vínculos duradouros com a comunidade, prejudica a continuidade do cuidado e afeta diretamente o processo de ensino-aprendizagem em saúde.
Outro desafio importante diz respeito à limitação da infraestrutura física da unidade de saúde. O espaço disponível é insuficiente para acomodar um número maior de profissionais e estudantes, e não há salas adequadas para a realização de atividades teóricas ou formativas. As salas de atendimento são extremamente reduzidas, o que não inviabiliza, mas dificulta em muitos momentos, a realização de ações coletivas e práticas pedagógicas que envolvam preceptoria, supervisão e discussões clínicas em grupo.
Essas dificuldades estruturais e contratuais, somadas à complexidade social do território, exigem um esforço contínuo das equipes para manter a qualidade da atenção, fortalecer os vínculos com os usuários e promover a formação em saúde centrada nas necessidades reais da população.
Esta experiência tem como objetivo apresentar uma metodologia de trabalho alternativa e/ou complementar ao modelo tradicional, historicamente estruturado em sistemas de saúde hierarquizados, baseados nas lógicas de referência e contrarreferência. A proposta visa propor um novo modelo, uma nova forma de produzir saúde, saindo da lógica dos diferentes níveis de atenção, mas promovendo uma atuação mais integrada, centrada nas necessidades reais do território e das populações em situação de vulnerabilidade.
Ao compartilhar essa experiência, buscamos contribuir com o aprimoramento das políticas públicas de saúde, oferecendo subsídios e referências práticas que possam ser adaptadas e replicadas em outros contextos, especialmente em ações voltadas ao enfrentamento da hanseníase. Acreditamos que essa estratégia pode fortalecer a atenção básica, qualificar os processos de trabalho e ampliar o acesso ao cuidado integral em municípios com características semelhantes.
O Apoio Matricial (AM) configura-se como uma metodologia inovadora na produção do cuidado em saúde, baseada na atuação conjunta entre equipes, com foco na corresponsabilização, na educação permanente e na integralidade da atenção. Embora seu potencial transformador seja reconhecido, sua aplicação na Atenção Primária à Saúde (APS) ainda é limitada e, quando presente, concentra-se majoritariamente na Saúde Mental.
Considerando a hanseníase como uma doença infecciosa crônica que, quando não tratada oportunamente, pode gerar sequelas irreversíveis e graves repercussões psicossociais, o AM surge como estratégia potente para enfrentamento da doença. A complexidade clínica e social da hanseníase, somada à formação ainda insuficiente dos profissionais sobre o tema, justifica a necessidade de ações formativas específicas e contínuas.
Em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFC e a Fundação NHR Brasil, estruturou uma experiência exitosa de AM em hanseníase, iniciada por meio de projeto do Ministério da Saúde. A estratégia contempla três principais frentes formativas presenciais implementadas em 2024: (1) oficinas com Agentes Comunitários de Saúde; (2) encontros com estudantes do internato em Medicina; e (3) ações de matriciamento nas unidades de saúde. Essas iniciativas fortalecem a integração ensino-serviço e contribuem para qualificar o cuidado na APS.
Paralelamente, foi criado o primeiro Ambulatório de Hanseníase localizado na APS. Com funcionamento semanal, oferece diagnóstico clínico, manejo de reações hansênicas, avaliação de contatos, realização de testes rápidos, administração de BCG, raspado dérmico e biópsia de pele. O ambulatório também atua como campo de prática para residentes de Medicina de Família e Comunidade e estudantes da UFC e Unifor, sendo espaço de formação clínica e vivência territorial.
Para ampliar o alcance do apoio técnico-pedagógico, foi implantada a funcionalidade de Segunda Opinião, integrada ao prontuário eletrônico, permitindo que médicos da APS consultem especialistas para elucidação de dúvidas. Essa ferramenta, operada pela médica matriciadora vinculada ao Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB), reforça o caráter contínuo da educação em serviço.
Em 18 meses, foram capacitados aproximadamente 288 médicos e enfermeiros da APS, além de mais de 100 estudantes de Medicina e 50 residentes que participaram ativamente das atividades teóricas e práticas relacionadas à hanseníase. Como resultado, observou-se uma mudança significativa no perfil das unidades notificadoras, com maior descentralização dos diagnósticos — evidência concreta de que, com suporte adequado, a APS pode assumir papel central no enfrentamento da hanseníase.